sexta-feira, 12 de junho de 2015

Quem tem ouvidos que ouça

* Por Alexandre Vicente

Era uma manhã de segunda-feira. Acordei tomado por certa tristeza irracional. Uma visita indesejável com a qual aprendi a conviver e a dominar com muita dedicação. Segui minha rotina pois a opção não era realmente uma.

O café, densamente burocrático, abriu os trabalhos da manhã. O próximo passo era um passeio com meu amigo. Uma obrigação que forçosamente me trazia para o mundo. Isso me faz bem. Então eu o encontrei. Perdido e sem rumo. Apegava-se a qualquer pessoa que lhe desse um mínimo de atenção.

Sem minha permissão, ou mesmo sem sequer sentir-se constrangido invadiu minha casa e transformou aquele dia. De repente, não tinha tempo para permanecer naquele estado. Precisava cuidar dele. Necessitava de água, banho, comida e carinho.

A manhã transformou-se em um campo de trabalho que mandou a tristeza para bem longe. Não havia tempo para tamanha mesquinharia sentimental despropositada. Só havia tempo para ele.

Um banho com antipulgas, que saiam as centenas. O alívio era perceptível. Ele agradecia com seu jeito abrutalhado. Onde abrigá-lo? Ali não era possível ficar. ”Liberdade não é fazer o que se quer fazer, mas sim fazer o que se deve fazer”. Palavras poderosas que me ocorriam naquele momento.

Críticas a minha escolha, pois esta mexia na zona de conforto de outros. Muitos não admitiam tamanha “irresponsabilidade”. Mas o que fazer quando o certo a fazer é trazer o desafio para si? Não há resposta correta. Neste momento só existem intenções positivas, pois todas são. Pelo menos para quem as têm.

Quando comecei a duvidar de mim, recebi uma mensagem no WhatsApp. Algo a ver com abrigar um mendigo que na verdade era Jesus Cristo. Então se assim era, ele estava ali. Se somos todos uma só energia, o Cristo estava ali. Com pulgas, com sede, com fome e precisando apenas de uma chance.

Insisti. Encontrei um lar provisório. Críticas de uns. Compreensão de outros. Na volta para casa, bati na traseira de outro automóvel. A provação da fé. Era preciso foco. Um problema menor diante do todo. O principal era conseguir um lar definitivo para Brutão. Esse foi o nome que me veio. Naquela semana, Jesus Cristo era Brutão.

Uma semana de buscas, anúncios e decepções. Recusado em outra casa a resposta já estava pronta. Quem tem ouvidos que ouça: “Porém, se alguém não vos receber, nem der ouvidos às vossas palavras, assim que sairdes daquela casa ou cidade, sacudi a poeira dos vossos pés”.

Mais uma noite em outra casa. Outro lar provisório. Por que uma alma tão doce precisava passar por tanta privação? Ele só queria amar alguém. Porém, no dia reservado ao seu culto, naquele em que ele ressuscitou, Brutão ascendeu a um lar de amor.

Missão cumprida. Seja feliz meu bom amigo. Compartilhe e doe a sua alegria a quem merece. Falaram as bocas o que transbordava aos corações. As feridas cicatrizam e no fim o que prevalece é o bem que se faz ao outro. Obrigado por me salvar da escuridão daquela segunda-feira.

Obs.: Brutão,  já chamado Mike, faleceu ou ascendeu três semanas depois de achar seu ultimo lar em decorrência de uma pneumonia. Entender os feitos divinos está além de nossa compreensão.  Só a fé inabalável de que o bem triunfa seja como for é o único conforto que precisamos.

* Escritor e compositor



Nenhum comentário:

Postar um comentário