* Por Marco Albertim
Outro dia encontrei Pacajus na Praça do Carmo; sentado sob o oitizeiro onde, conforme me disse, namorara Santina. Inquiri de sua viuvez precoce.
O caso, inda que com lances grotescos, comum a dramas inusitados; tão inusitado que, não fosse narrado ainda que num rodapé de página, seria um descaso com as demandas de um crente ferozmente manso. Urdi-o personagem de um conto. Ele exigiu que seu nome fosse posto com a sonoridade de todas as letras, para zelar pela memória de Santina. Assim conveniados, despedimo-nos com um aperto de mão. Ele segurou-me com a energia própria da crença, com os dedos frios do contato com o oitizeiro molhado da chuva, e da ausência de calor no corpo de Santina no caixão.
Fora casado por dez anos com Santina; conforme sua sublimação, de pureza evangélica. Súbito, sem nunca ter dado indícios de prevaricação, juntou as roupas numa maleta há muito em desuso. Ante os olhos perplexos de Pacajus, confessou antes de cruzar a porta da frente, amar outro. Os dez anos de vida sob o mesmo forro da casa de alvenaria barroca, deram-se sem a percepção da vizinhança. Não tiveram filhos, não chamaram atenção com arroubos de pais no trato com filhos. Assim, a rotina aquosa, analgésica no juízo dos dois, surtiu em Pacajus, dois olhos e uma boca embasbacados com a partida de Santina.
Santina mudou-se da rua do Amparo para a rua das Quintas. No Amparo, vizinha a sua casa, no Fórum de Goiana, firmara contrato nupcial com Pacajus. As Quintas, não é supérfluo dizer, larga e comprida para dar acesso ao portão de ferro do cemitério.
Santina ainda teve direito a quinze dias de casamento com Suetônio, o novo parelho. Os dois frequentaram a missa no domingo, na igreja do Carmo; e a padaria na mesma rua, pouco se importando com o juízo confuso de misseiros. Quinze dias... Numa noite, os gemidos do casal juntaram-se ao pio crestado da coruja, logo acima do telhado da casa. Santina teve tempo de sorver o sêmen de Suetônio; não o absorveu como um elixir, posto que o aneurisma prostou-a, poupando somente o ricto de gozo nos olhos pendentes.
Na capela do cemitério, o caixão com o corpo cercou-se de quatro círios acesos. Um véu branco cobriu o rosto da defunta. Pacajus e Suetônio, separados pelo caixão, unidos, cada um segurando uma das mãos de Santina. Não tinham nos olhos o brilho confesso do choro, mas uma vívida cintilação dando conta da perda. Duas coroas de flores, uma de cada lado do caixão; numa, lia-se: Dez anos. Obrigado, Santina; noutra, O amor não tem idade. Adeus, Santina. Suetônio pagou as despesas com o ataúde, a mortalha, as flores. Pacajus deu uma gorjeta ao coveiro.
Era a Páscoa. Pacajus convidou Suetônio para tomar vinho em sua casa. O primeiro marido desfiou a rotina dos dez anos com Santina. Suetônio, a intensidade dos quinze dias. Pacajus descobriu que Suetônio começou a namorar Santina, sob o mesmo oitizeiro que os abrigara.
- Por que não tiveram filhos? – quis saber Suetônio.
- Santina era estéril. Ela não lhe disse para não lhe assustar.
- Só fomos para a cama depois que ela lhe disse que me amava.
- Então não fui corneado!
Dois meses depois, Pacajus acordou na mesma cama que partilhara com Santina. Viu o pufe na frente da penteadeira com a marca de uma nádega. À noite, já deitado, ouviu um gemido semelhante ao de Santina, quando coitavam. Daí em diante, nutriu a crença de que sua alma, divagando sem descanso, queria o perdão. Pediu ajuda a Suetônio. Os dois passaram a frequentar sessões espíritas. Subornaram o porteiro do cemitério, para à noite, de madrugada, quando as almas assuntam sem rumo, acenderem velas no túmulo de Santina.
Pacajus e Suetônio hoje frequentam sessões de umbanda. Vez ou outra associam na voz do pai de santo um indício de como reencontrar Santina. O pai de santo incorpora entidades distintas, até as hostis.
Ao fim de cada sessão, os dois voltam para casa, para apreciar a mesma marca de vinho de quando se tornaram viúvos solidários.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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