quarta-feira, 30 de maio de 2018

Uma luneta para o céu - Mara Narciso


Uma luneta para o céu


* Por Mara Narciso


Tenho acompanhado o trabalho dos fotógrafos Manoel Freitas e Eduardo Gomes e a particularidade de fotografarem a Lua em todas as suas fases e esplendor, e, colocando horizonte, montanhas e vegetação tornam mais belas suas produções. Isso me fez recordar de uma luneta que pertencia ao meu Tio Tom, Petronilho Narciso Júnior. Meu avô o presenteou, e eu, fã desse tio criativo e cheio de imaginação, seis anos mais velho do que eu, ficava encantada, pedindo-o para dar uma espiada no mundo através das lentes da sua luneta.

Era um canudo branco, com um anel preto na parte de trás, que a fechava. Na parte da frente ficava o lugar de se colocar o olho. A imagem nos aproximava de tudo. Era mágico e eu ficava louquinha, ainda que mal alcançasse o visor sobre o tripé. A casa dos meus avós era na Rua Carlos Pereira, 61, no centro da cidade, perto da Catedral. Bem em frente tinha um poste de luz. Sobre o passeio, Tio Tom colocava a luneta, apontava para algo que lhe despertasse curiosidade e fazia o foco. Quando já estava no ponto deixava a gente ver. Numa emoção em estado puro, eu era capaz de ficar horas envolvida nesse gostoso lazer, desvendando os mistérios daquilo que não era visto a olho nu, mas que, através das lentes mostrava todos os detalhes.

Debaixo do sol forte, Tio Tom escolhia uma direção e palmilhava o espaço, buscando algo interessante. Éramos crianças e nem imaginávamos em bisbilhotar os vizinhos. Naquele tempo quase não tinha prédios em Montes Claros. A intenção era apenas ver de perto algo que estivesse distante, coisas e pessoas na rua. Como a cidade tem vários morros, o horizonte não é tão longe e mirávamos para cima dessas elevações.

A bela Catedral de Nossa Senhora Aparecida, construída entre 1926 e 1950, une os estilos romântico e gótico, cabe 3.000 fieis e tem três torres, sendo a central de 65 metros. No topo dela tem um crucifixo de estrutura metálica, de quatro faces, de vidros azuis e amarelos como vitrais iluminados e, faltava um deles, tinha também raios metálicos irradiando do centro. Sem o aumento, nunca poderíamos imaginar tal detalhamento. Ganhávamos horas de prazer olhando a torre da igreja, seu grandioso telhado, janelas e vitrais.

O tempo era diferente, passava mais devagar. Meu Tio Tom era bom e tinha paciência comigo e com a minha curiosidade. Também foi ele quem me ensinou a andar de bicicleta quando eu tinha sete anos. Ele me emprestou a dele, que era verde, segurou para eu subir, e me empurrou um pouco. Então soltou e eu saí pedalando.

À noitinha nós íamos para a rua, colocávamos a luneta no passeio do outro lado, e ficávamos esperando pela Lua. Em qualquer fase, observávamos as crateras, que, sabemos de cor como são. Afinal a Lua só nos mostra um lado, ainda que tenha, como a Terra movimentos de rotação sobre seu eixo e de translação, seguindo o planeta em volta do Sol.

Quando Tio Tom perdeu o interesse pela sua luneta, ela me foi dada de presente e eu a levei para o apartamento em que morávamos, na Avenida Santos Dumont, perto do Colégio Marista São José. Da janela do meu quarto, no segundo andar, o mundo se descortinava numa maravilhosa festa verde. Havia muitos lotes vagos na década de 1970. Eu tinha 15 anos e Geraldo Macedo, meu colega no Colégio São José foi meu primeiro namorado. Geraldo jogava futebol no time do Colégio e na Associação Desportiva Ateneu de Montes Claros. Podia ver o campo do meu quarto, e a luneta ampliava minha visão. Dava para reconhecer os jogadores no colégio. No dia de treino eu ficava vendo o jogo, que vinha para pertinho de mim. Observar o mundo pela luneta era um tratamento contra o tédio. Eu já gostava de futebol e mais ainda através das lentes, que me levavam para longe, fazendo do longe perto e do impossível algo real e verdadeiro.

As pequenas conquistas costumavam demorar muito para chegar, e por isso traziam um prazer mais durável do que os de hoje, quando tudo é descartado de forma rápida. Não me recordo da minha luneta ter se quebrado e nem de tê-la dado a outra pessoa. Não sei que fim levou, mas as imagens que proporcionava permanecem em mim.


* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”




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