sexta-feira, 25 de maio de 2018

Editorial - Assim terminamos nós


Assim terminamos nós


Leio, num despacho antigo, da Agência France Press, de oito anos atrás que o escritor italiano Dino Buzzati, autor dessa obra-prima (entre outros livros) que é o romance “O deserto dos tártaros”, teve então um dos últimos pedidos que fez à família atendido, 38 anos após a morte, ocorrida em 28 de janeiro de 1972, em Milão. Suas cinzas, conservadas ciosamente por sua viúva na capital da Lombardia, foram finalmente espalhadas na cadeia das Dolomitas, nos Alpes italianos.

De imediato, vem à mente do leitor atento, que presta a devida atenção no que lê com espírito crítico, uma série de perguntas, cuja principal é: “Por que só depois de passado tanto tempo a vontade de Buzzati foi cumprida?” Afinal, passaram-se quatro décadas depois do falecimento. Porque na região de Veneza, onde as cinzas foram espalhadas, isso era proibido. Não será mais. Uma lei, aprovada em 2010, autorizou este tipo de homenagem póstuma.

Dessa forma, os restos do escritor foram dispersos onde tanto amou: a localidade de Croda del Lago. Esclareça-se que Buzzati, alpinista amador, tinha obsessão por essas montanhas, cujos encantos imortalizou em dezenas de textos.

Os leitores mais jovens, ou aqueles que pouco leem e pouco se informam sobre os grandes escritores do século XX, notadamente os estrangeiros, provavelmente desconhecem esse grande talento. Não os critico. Ele é, de fato, relativamente pouco conhecido no Brasil.

Na Itália, porém, é considerado um dos grandes da literatura local. Foi eclético, escreveu de tudo: romances, peças de teatro, reportagens (era jornalista), peças para rádio, libretos, poesias e contos. Aliás, neste gênero publicou a magnífica coletânea de histórias “Os sete mensageiros”, traduzida para o português, com relativo sucesso no Brasil.

A obra de Buzzati é classificada pelos críticos como “realismo mágico”. Muitos deles, todavia, tentaram estigmatizá-lo (sempre há incompetente para botar defeito nas obras alheias), acusando-o de alienação social. È como se entendessem que todo escritor tem que, necessariamente, ser engajado ideologicamente. Não tem, óbvio.

Em vários de seus contos, criou animais imaginários fantásticos (um dos quais chamou de “bogeyman”), mostrando incrível fertilidade de imaginação. Há quem veja em seu estilo nítidas influências de Jean-Paul Sartre, de Albert Camus e, sobretudo, de Franz Kafka. Como se vê, não poderia haver companhia melhor.

Pois é, há já oito anos, não restam mais sequer cinzas de Dino Buzzati. Mas seus livros estão aí, para qualquer amante de literatura ler, que é o que importa. Até quando? Até que isso, que chamamos (eufemisticamente) de civilização durar. Pode ser mais dois anos (há quem garanta que a vida na terra será extinta em 2020), cinco, dez, cem, mil, sabe-se lá quantos.

Isso, claro, se não retornarmos à barbárie, o que não é nada difícil e se multidões ensandecidas não agirem como no clássico filme dirigido por François Truffaut, “Fahrenheit 451”, adaptado do romance de mesmo nome de Ray Bradbury. Nessas obras (película e livro), turbas ensandecidas saem à caça de tudo quanto existia de textos, (até bulas de remédio) para incinerar e reduzir a cinzas.

Ao longo da história, isso já ocorreu sem conta de vezes. Se voltasse a ocorrer, portanto, não seria novidade. Quanto à morte... Gostemos ou não, estejamos ou não conscientes, todos teremos, um dia, o destino de Dino Buzzati.

Talvez não sejamos, é verdade, cremados (muitos têm horror por esse asséptico procedimento). Se o formos, talvez nossas cinzas não tardem tanto para serem espalhadas pelos bosques e campos dos lugares que tanto amamos. É provável que o sejam já no dia seguinte da cremação. Mas é mais do que provável, porém, que se não forem, não teremos uma viúva tão amorosa, ou filhos idem, que guardem o que sobrar de nós por tanto tempo. Disso, duvido.

Pessimismo à parte (afinal, tudo o que escrevi é a mais nua e crua das realidades, ou pelo menos das possibilidades), o mais provável é que sejamos sepultados em um mausoléu. E que, ao cabo de reles semanas, se veja abandonado, com o mato tomando conta da tumba. E pior, pode acontecer de, passados, digamos, cinco anos, sermos despejados da última morada. Talvez nossos restos sejam exumados e encaminhados para algum ossário, para que a tumba seja reaproveitada por outro.

Quem sabe, então, o coveiro que realizar a sinistra tarefa, segure nossa caveira nas mãos e pense “sic transit gloria mundi”. Não em latim, claro, pois se fosse tão culto, não seguiria essa profissão. E isso nem mesmo precisa ser verbalizado.

De nós, então, só restarão nossos livros. Claro, tudo envolvido numa infinidade de condicionais. Ou seja, “se” ainda existirem pessoas e a Terra for salva a tempo dos riscos iminentes que corre. “Se” ainda houver algum resquício de civilização. “Se” multidões ensandecidas não agirem como em “Fahrenheit 451”. E vai por aí afora. Vejam só o que um ato nobre da viúva de Buzzati me causou!

Boa leitura!

O Editor.


Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk

Um comentário:

  1. Quando morre um conhecido, fico dias imaginando como está a putrefação corporal. Com a cremação, isso não acontecerá.

    ResponderExcluir