segunda-feira, 28 de maio de 2018

A arte de absorver conceitos - Débora Guedes


A arte de absorver conceitos


* Por Débora Guedes


Juquinha volta para casa com sua roupa sem marca, rasgada, desbotada e suja. Chega, e... surpresa. Não liga a TV. Entra na cozinha, abre a geladeira e bebe sua já comum garrafa d`água. Quando chega sua mãe, e pergunta como foi seu dia, ele simplesmente responde com uma sobrancelha arqueada de desaprovação, emitindo um som indecifrável, que soava como algo parecido com “ahhn”.

Instantes depois, dona Graça, a mãe, liga a TV para assistir um de seus programas femininos favoritos que passam toda tarde. Ouve, então, pela primeira vez, em algo em torno de duas semanas, a voz do filho, gritando: “Aaahhh! Desliga essa porcaria! Eu odeio o sistema!”, assim mesmo, como se estivesse falando do sistema braile de escrita para cegos ou de um novo sistema de radiodifusão.

Odiar o sistema... o tão famoso sistema. Odiar a Rede Globo, a Coca Cola, o McDonald’s, os EUA, a música popular comercial... Tal prática, considerada por alguns indício de sua ativa militância, já é de praxe em qualquer roda de conversa entre amigos. De tão comum, frases com tal caráter são ditas indiscriminadamente, às vezes sem querer, já foram fixadas em nossa consciência e, cada vez que surge em pauta uma palavra como “coca”, de imediato surge alguém dizendo: “Eu odeio a indústria! Eu odeio o capitalismo! Eu odeio a Coca Cola!”.

Hoje a atitude que, anteriormente, ia contra a corrente, é a majoritariamente seguida. A “esquerda” tornou-se “direita” e as pessoas cada vez mais se sentem centro dos padrões pregados pela sociedade ao terem tais comportamentos antes abominados pela “massa”, o que faz com que sejamos contrários. Sim, a locução verbal “ser contrário” pede um complemento. Quem é contrário, é contrário a algo ou a alguém. Entretanto, aprendemos apenas a ir contra, o objeto é irrelevante na frase. Nos tornamos “rebeldes sem causa”, mais tristes, mais vulneráveis, mais amargos.

É notável que o papel de alienadora, de bruxa da Branca de Neve, cabe muito bem ao nosso atual sistema midiático, à indústria fonográfica e à forma e estrutura governamental vigente. Conseqentemente, a indignação e tentativa de fazermos com que tal sistema melhore seus métodos é louvável e necessária.¨

O que busco, através desse texto, não é a crítica aos pensamentos revolucionários, à luta contra a estagnação da sociedade. Acredito, apenas, que, apesar de todos os problemas e falhas contemporâneos, ainda há muito de positivo a ser aproveitado por nós dentro desse mundo essencialmente tecnológico e metódico. A vivência de Juquinha, que poderia ser Pedrinho, Zezinho ou Mariazinha, deve ser acometida pela indignação e tentativa de transformação da estrutura do nosso meio, porém não interrompida e terminada por elas. Juquinha tem, além do direito, o dever de viver, não simplesmente de existir. Mesmo que o pano de fundo dessa vida seja composto de anúncios publicitários, políticos com malas de dinheiro e empresas multinacionais.


  • Jornalista formada pela PUC-Campinas



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