sexta-feira, 18 de maio de 2018

A ditadura sem fim do Brasil - Urariano Mota


A ditadura sem fim do Brasil



* Por Urariano Mota


As notícias da semana atualizam a história que a direita quer ver esquecida. Os documentos da CIA, agora revisitados, falam que o ditador Ernesto Geisel ordenou a execução de presos políticos, além da morte com injeção de sacrificar cavalos em muitos. Em um deles está provado: José Montenegro Lima, conhecido como Magrão, foi sequestrado pela ditadura em setembro de 1975, levado para um centro clandestino de tortura e morto com uma injeção de matar cavalo. Depois, atiraram o seu corpo em um rio.


Quatro décadas depois do crime, o Ministério Público Federal denunciou o coronel Audir Santos Maciel. Ex-chefe do DOI-Codi, ele foi acusado de homicídio e ocultação de cadáver. A Justiça rejeitou a ação sob o vergonhoso argumento de que o Supremo Tribunal Federal mantivera a validade da Lei da Anistia em 2010. Na semana passada, a procuradora-geral da República pediu a reabertura do caso.

Diante da revelação de que o General Geisel era um assassino, a notícia pareceu uma surpresa, porque a sua fama era a de presidente que se opunha à morte de prisioneiros. Vocês já percebem o absurdo da boa crença no Brasil: teria havido um ditador que se opunha à morte de preso político. E com um fato na aparência novo, uma irresponsável interpretação passou a pôr em dúvida o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que teria deixado passar descoberta tão grave. Sobre isso, o digno pesquisador Paulo Sérgio Pinheiro, que não renega o seu papel de participante da Comissão, falou à BBC Brasil:

“Tudo o que nós coligimos de práticas, por exemplo da guerrilha do Araguaia, é detalhadíssimo. Acho que é um documento importante para liquidar a imagem do general, o Geisel. Claro que foi um feito jornalístico importantíssimo, não vou diminuir isso, absolutamente. Mas quem estabeleceu a cadeia de comando estando diretamente no gabinete do presidente e do ministério da Guerra fomos nós. Se você for lá no relatório, verá que tivemos condições de estabelecer as cadeias de comando, que foi algo dificílimo. Ali está perfeitamente demonstrado que não era abuso, não era excesso, mas era uma ação coordenada por parte do presidente da República. O presidente era informado de tudo. Tudo isso já estava totalmente esclarecido. Agora, evidentemente, uma bala de prata como essa é importante.

É o último prego do caixão. Na verdade, todos os atentados que foram cometidos no governo Geisel estão terrivelmente fundamentados e a Comissão da Verdade estabeleceu que ele estava informado sobre tudo o que acontecia. Nenhuma missão decisiva de eliminação podia ser feita sem o aval dele. Este documento somente vem a corroborar isso. Agora, como está causando um enorme barulho, é bom porque liquida de vez essa cultura melíflua, ou simpática ao governo.

Isso não é uma mancha em um currículo maravilhoso. Isso é só uma pequeníssima confirmação do que a Comissão da Verdade já tinha estabelecido”.

Então veio a público a reação oficial nas palavras do Ministro da Defesa do ex-presidente Temer:

"Para o Ministério da Defesa, esse tema aí se esgota na Lei da Anistia. A partir daí é uma atividade para historiadores e, se houver demanda, para a Justiça... Porque, com a Lei da Anistia, do ponto de vista militar, esse assunto fica encerrado".

Mas a Lei não é a expressão da Justiça. Nunca foi, desde a escravidão, pelo menos. Se assim tem sido oculto, debochado até aqui, assim não é para a civilização brasileira. Do meu modesto lugar de escritor, tenho procurado retomar alguns desses crimes. No livro Soledad no Recife, pude escrever:

“É natural que, por não saber, por ignorar o que de fato houve, mal finda a leitura das notícias trazidas por telegramas, é natural que o poeta Mario Benedeti recuasse ante a maior crueldade. Pois que fim grandioso seria, ainda que duro e doloroso, que belo fim seria a morte sob ráfagas, rajadas de metralhadoras, lufadas de vento, raios de luz de balas de Pernambuco! Os corpos, quando metralhados, sobem. Dizem que sobem sob o impacto dos tiros. E assim atingidos com tal profundidade e rapidez, sob os clarões do fogo, os corpos sobem e caem sem vida. Quase, se nisso não veem cinismo, é quase como um fim sem dor. Terrível, mas ainda não foi assim, sob ráfagas ou rajadas de metralhadora.

No poema de Benedetti:

‘por lo menos no habrá sido fácil
cerrar tus grandes ojos claros...’

Não, grande e terno poeta, a Soledad que conheceste em Buenos Aires, em Montevidéu, a bela e graciosa e feliz mulher, porque vivia no que acreditava, porque lutava para um mundo fraterno, porque se entregava ao mundo como quem se doa a uma fraternidade, estava na verdade, quando pela covardia foi apanhada, com os olhos sem que se fechassem. Os dela estavam uma câmera que refletia em instantâneo o perverso das luzes. ‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com expressão muito grande de terror’, conforme registrou esse instantâneo a advogada Mércia Albuquerque. Do país onde te encontravas, Benedetti, apenas com a dor da perda e a memória da vida de Soledad, é natural que somente pudesses escrever, no calor da urgência, quando te referiste àquelas duas câmeras no rosto de Sol, com o amor que despertaram em ti:

‘tus ojos donde la mejor violencia
se permitía razonables treguas
para volverse increíble bondad’.

Silêncio. Entram a romanza para violin y orquesta nº. 2 e o terror. O mais piedoso é o silêncio. Uma pausa, um parágrafo. Passemos ao largo, se quisermos, o parágrafo seguinte pode ser ultrapassado de um salto, assim como editamos com os olhos uma crua imagem no cinema.

‘O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror’.

As santas virgens do Paraguai carregam o filho nos braços e a seus pés têm anjos, às vezes também luas em quartos minguantes. Sangue e feto aos pés só a guerreira Soledad Barrett Viedma”.

No mais recente romance “A mais longa duração da juventude”, escrevi sobre o personagem Vargas, numa tentativa de recriação de Jarbas Pereira Marques, assassinado no Recife:

“Então a advogada anotará dessa entrevista com Vargas: ‘Ele era um tipo romântico, ingênuo’. O que isso quer dizer? Ali na sala está corporificado para ela: de braços abertos, Vargas protege a companheira e a filha. No diário da advogada: ‘eu conversei com ele que fugisse, ao que ele se negou dizendo que isso não faria, porque zelava pela segurança da filha e da esposa’. E Vargas, na defesa sem armas, na imaginada que pode dar às pessoas do seu extremado carinho, registra o diário da advogada: ‘Eu pedi que ele deixasse a criancinha sob meus cuidados. Ele me falou que não ia levar Nelinha para uma aventura, porque ela era uma pessoa frágil, e seria também assassinada. Aí era pior, porque a menina ficaria órfã, sem ninguém’.

Neste ponto flagramos a pessoa, a coragem e terror de Vargas: a consciência de que será morto. Mas não só morto a tiro, de bala. Morto depois de intensa tortura e sofrimento. Aqui entra o ponto nevrálgico, ele sabe que não demora ser brutalizado, se continuar no Recife. Mas não deseja que a sua mulher o acompanhe, na hipótese de fuga ou adiamento da execução. Se ele é o condenado, por que atrair, dividir o inferno com quem ama?

Ele é o terrorista seguinte para o matadouro. Até o gado sabe quando chega o seu último instante. Que dirá um homem. O boi recalcitra, não quer ir para a frente, e por isso tem que ser puxado, enganado, até que receba o golpe traiçoeiro.

Então Vargas arregala os olhos a ponto de quase saltá-los das órbitas. Não era só medo, essa palavra que ele evitava falar como expressão de um estado vergonhoso. Impossível de reprimir, não era só medo de ser preso. Agora, enquanto fala da presença da repressão cruel no Recife, Vargas tem a intuição do mais grave que se reserva para ele. Não será só preso. Ele vai ser morto. Executado, depois de infindável tortura. Então Vargas se vê dias adiante, e a cara que antevê não é a dele, mas de alguém inchado, tão largo, que não caberá no caixão encomendado para a sua altura e peso”.

Aqueles sobre quem escrevi, num gênero de ficção que ambiciona a verdade, sofreram na vida real um massacre muito maior, infinitamente cruel. O que escrevi em palavras, eles gravaram com as próprias vísceras e sangue.
Apesar do meu esforço em ser duro e sem piedade, as últimas notícias ultrapassam o indizível horror. Prisioneiro morto com injeção de matar cavalo. Presa grávida que tem o feto arrancado. É tudo verdade, para nossa desgraça, é tudo verdade. Crime contra a humanidade não deve nem pode ter anistia. Enquanto a tortura e seus apoiadores continuarem impunes, a ditadura brasileira não terá fim. Ela continua a vagar sem o descanso de uma sepultura, à semelhança dos presos cujos ossos até hoje não se encontram. 


(Publicado no Portal Vermelho, em 18 de maio de 2018).



* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
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