Crônicas de uma viajante pelo Brasil
* Por Débora Menezes
Destino: Fordlândia, Pará
Nomes esquisitos não faltam nesse
imenso mapa que é o Brasil. Ouricuri. Não Me Toque. Arco-Íris. Nunca Te Vi.
Boca do Acre. Espera Feliz. E sempre há algum nome nessa lista que termina com
“pólis” ou “lândia”. Feito Fordlândia.
Nem no mapa que carrego nas viagens esse lugar aparece, até ver esse nome pela
primeira vez em uma reportagem. É longe: tem acesso apenas por barco, e por
estradas de terra onde só se arrisca seguir quando não chove. Fica no Pará, em
uma das margens do Tapajós, rio de águas claras que divide a floresta ao meio.
Houve um tempo quando o Brasil
acreditava ter domínio absoluto sobre essa floresta e poderia fazer dela o que
quisesse, até doar a um americano fazedor de dinheiro. Um projeto ambicioso
transformou essa região paraense em uma cidade pronta para gerar riquezas na
forma de borracha, que saía dos seringais de Fordlândia e da vizinha Belterra,
localizada no mesmo rio. Escolas, hospital, lojas, até hidrantes havia para
simbolizar o progresso.
Mas
não durou muito esse sonho que a floresta engoliu. Ficou a história, que parece
tão fora de lugar quanto o próprio nome dessa vila, hoje pertencente ao
município de Aveiros. Restam ainda algumas testemunhas vivas daquele período,
teimosas na esperança de que Fordlândia se transforme em uma cidade. Ou pelo
menos em uma coisa, qualquer coisa, que a liberte da escravidão desse passado
que poderia ser tudo, e resultou em nada.
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Dona
América, longe da América. Meia dúzia de casas e ruas de terra. Quase ninguém
nas ruas. Dois mercados, uma farmácia, um açougue, um e outro boteco, que esse
tipo de estabelecimento não falta em lugar nenhum. Muitos urubus, galinhas
d’angola ciscando pelo chão e bois pastando ao lado das casas poucas da vila.
Difícil imaginar que um dia, na década de 1930, Fordlândia foi um dos lugares
mais movimentados do rio Tapajós.
Naquela época, o empresário Henry Ford
conseguiu levar a cabo um ambicioso projeto no meio da floresta amazônica. O
americano “convenceu” o governo do Pará a doar uma área de um milhão de
hectares nas margens do Tapajós. E investiu US$ 20 milhões na criação da vila e
na plantação de milhares de seringueiras, fornecedoras da borracha –
matéria-prima para complementar a fabricação de automóveis, um dos ramos fortes
da economia dos Estados Unidos.
A vila era no meio do mato. O que não
impediu o progresso e um certo agito local. Cerca de três mil funcionários ou
mais, fora os estrangeiros que ocupavam cargos de chefia (brasileiros, só como
seringueiros ou em ocupações menores) movimentavam Fordlândia nessa época.
Bailes animados nos finais de semana, cinema trazido diretamente dos EUA e um
comércio ativo existiram nessas ruas desoladas, ainda mais quietas ao meio-dia
por causa do sol forte, hora em que ninguém sai de casa. “As Lojas
Pernambucanas mantinham uma filial aqui com os tecidos da moda nas capitais”,
lembra dona América, uma das moradoras mais antigas do local e ex-governanta de
uma família de americanos.
Assim como a maioria dos moradores que
viveram naquele tempo, ela recorda com orgulho da estrutura que Fordlândia
mantinha a anos-luz de outras tantas cidades perdidas pelo mundão amazônico.
Havia comércio, e cinema, e bailes, e o mais importante: infra-estrutura. Como
água encanada e filtrada, sistema de hidrantes e até um bem equipado hospital,
onde foi realizada a primeira cirurgia plástica do Pará.
O sonho durou menos de 20 anos. Aos
poucos, o número de funcionários foi diminuindo junto com a queda de produção
da seringa, enquanto os americanos administradores do projeto faziam as malas
para ir embora. A segunda guerra pode ter acelerado essa crise, assim como a
falta de competitividade da produção de borracha amazônica e o aparecimento de
pragas que invadiram os seringais. Mas ninguém tira da cabeça dos moradores
locais, como dona América, de que os americanos se mandaram depois de saquear
minérios no interior da floresta. Verdade ou folclore, o certo é que restou a
Fordlândia, e ao governo brasileiro, um grande problema nas mãos. Tentou-se
organizar a produção agropecuária no lugar da extração dos seringais. Por pouco
tempo.
E o tempo fez Fordlândia cair no
esquecimento. Hoje, muitos de seus moradores recebem aposentadoria do
Ministério da Agricultura, que se encarregou de administrar o que não era
administrável. O famoso hospital foi um dos últimos símbolos a cair por terra.
Suas portas fecharam em 1997, quando o único médico que ainda atendia desistiu
de continuar por lá.
Visitar o que restou da antiga
Fordlândia é desgastante. E nem tanto por causa do sol, dos mosquitos, ou da
úmida opressão da floresta. Tudo o que remete ao passado (ao “tempo dos
americanos”, como se referem os moradores atuais), está irremediavelmente sujo,
abandonado, carcomido. Até os fantasmas parecem rejeitar esse lugar esquecido.
No hospital, a antiga farmácia e o
laboratório ainda guardam tubos de ensaio (quebrados), livros (comidos pelas
traças), pias de louça (trincadas). Ainda há um caderno para anotações de
pedidos de remédios, que data de 1942. Na lista, raridades como ópio em pó, na
época muito utilizado para enfrentar as tão comuns diarréias.
Na Vila Americana, onde moravam os
estrangeiros com cargos de chefia, a situação não é muito melhor. Espécie de
condomínio fechado separado dos funcionários brasileiros, essa vila ainda
abriga casas de imponentes fachadas, no estilo das antigas residências
americanas. Mas é só aproximar-se um pouco mais delas para ver telhas caindo e
vidros quebrados. Abandonadas há muitos anos, seus únicos inquilinos são
morcegos e aranhas. Em uma das casas, a mais conservada, um funcionário do
Ministério da Agricultura zela por alguns objetos amontoados. Cadeiras de
palha, uma balança que servia para pesar borracha. Uma daquelas vitrolas antigas
movidas a agulhões. Um quadro com o desenho do primeiro carro fabricado por
Henry Ford. A ironia simbólica da bandeira americana, rasgada nos quatro
cantos, em cima de uma velha lareira.
Muitos moradores, como dona Lurdes
(esposa de um seringalista daqueles tempos, o seu João), me acompanharam nessa
nostálgica visita ao passado. Gostam de mostrar
seu espaço e sua insistência em não perder as esperanças de que alguma
coisa vai mudar em Fordlândia. Culpam prefeitos antigos pelo descaso com o
patrimônio cultural deixado pelos americanos. Sonham com a chegada do turismo,
quem sabe o próximo fator de desenvolvimento para Fordlândia. Será? Vez em
quando um americano, um alemão ou um brasileiro levantam a poeira modorrenta
das ruas dessa vila, intrigados com o que poderia ter sido e não é mais.
(Mais ainda: admirados, como eu, com a
persistência teimosa dessa gente que insiste em manter viva, ainda que em
ruínas, um dos capítulos mais fantásticos da história do Brasil)
* Jornalista e fotógrafa.
Trabalhou por cinco anos e meio como repórter do Guia 4 Rodas, viajando pelo
Brasil para colher informações sobre hotéis, restaurantes e atrações. Já rodou
mais de 100 mil km, sozinha, pelo país – literalmente do Oiapoque ao Chuí.
Edita o site de turismo www.missd.com.br
e se mantém como free-lancer em turismo e gastronomia. Espera editar, em breve,
um livro com suas crônicas de viagem.
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