Estranhos
encontros na Lapa
A Lapa, entre os bairros cariocas, é um
dos que mais me fascinam, por duas de suas características. A primeira – seu
cartão postal – é a linha de bonde que passa em cima dos seus famosos arcos. A
segunda, a boêmia que a caracteriza e lhe dá um estranho encanto, um toque de
decadente nostalgia. É como se em cada esquina houvesse um poeta. Como se em
cada casa, ou bar, ou rua, existisse um poema palpitando, à espera de ser
apropriado e vestido com palavras. Não sei se passadas três décadas (a última
vez que estive no bairro foi em 1961), o lugar continua do mesmo jeito.
Acredito que sim, pois nesta fase em que a violência domina boa parte da sempre
maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, nunca li, ou soube por qualquer outro
meio, de algum episódio violento, (como tiroteio ou seqüestro), envolvendo esse
bairro, que tem cadeira cativa nas minhas lembranças de moço.
Na Lapa, conheci, além de prostitutas,
de gigolôs e de "malandros-bambas", ou seja, dos seus estereótipos,
poetas do mais puro estofo, que nunca publicaram livros, que não constam de
antologias, que não disputam concursos e nem ganham prêmios e que sequer
admitem que o sejam, mas que são os guardiões da autêntica poesia urbana
carioca. Entre dois tragos, bebericados lentamente em alguns de seus bares,
banhei inúmeras vezes, minha alma de lirismo. Descobri pérolas de emoção
declamadas por seus autores, engrolando a língua por causa dos efeitos dos
vapores etílicos. Percebi quanta beleza existe naquilo que é aparentemente
feio, vicioso, decadente e marginal. Mas é autêntico. É poesia pura e da melhor
qualidade.
Aliás, sobre o bairro, Manuel Bandeira
tem versos definitivos, dos tempos em que morou ali. De tão conhecidos, creio
ser desnecessário citá-los. Mas pesquisando a obra de Carlos Drummond de
Andrade, descobri um seu poema sobre a Lapa, que não conhecia e que me apressei
a anotar. Afinal, é uma raridade. Só não sei o título que ele lhe deu. Mas é o
que menos importa. O poeta itabirense (ou seria itabirano?), escreve:
"Villon,
Verlaine e Luís encontraram-se na Lapa.
A
vida – essa meretriz – tanto beija como escapa.
Villon,
Verlaine e Luís trautearam suas canções
com
riso, lágrima e uísque,
e
entre tantas emoções
deixaram
na noite escura
---
Villon, Verlaine e Luís –
a
luz mais terna, mais pura".
Lindo, não é verdade?!
Consegui identificar nesse poema que,
parodiando Mário Quintana, "invejo por não ser seu autor", dois dos
personagens desse impossível encontro, envolvendo pessoas de épocas muito diferentes,
separadas por séculos entre si. Villon é o poeta vagabundo francês, François
Villon (1431-1463), pseudônimo de François Montcorbier des Loges. Era um
rebelde, além de irrecuperável boêmio, que desafiava o rígido sistema vigente
em sua época, o que era extremamente perigoso e significava ou o calabouço ou o
patíbulo. É uma das figuras mais fascinantes da história da literatura mundial,
tanto pelos seus versos, quanto e principalmente pelo seu estilo de vida.
Verlaine é evidente. Trata-se do também
francês Paul Verlaine, simbolista do século XIX, um dos "cinq poetes
maudites". Há pouco mais de 70 anos, um dos seus versos serviu de senha
para o "Dia D", a invasão da Normandia por parte das tropas aliadas
durante a Segunda Guerra Mundial. Seus poemas e sua vida sempre estiveram
ligados à boêmia. Daí fazer sentido ser incluído no insólito encontro no bairro
carioca. Só não consegui identificar a qual "Luís" Drummond se
referiu. Por mais que raciocine, consulte colegas, busque referências na obra
drummondiana, permanece a incógnita. Mesmo levando em conta que houve poucos
Luíses poetas na literatura brasileira. Deve ser alguém do século XX. E a
citação, obviamente, não se reporta ao imortal Camões. Presumo que se trate de
algum boêmio da Lapa, dos que confessei acima terem me hipnotizando com sua
estampa e suas estrofes.
Essas figuras anônimas (e folclóricas),
embora continuem em seu anonimato, o que é muito estranho pela impressão que
causam, marcam seus perfis, seus contornos, o desenho de seus rostos em
"ferro e brasa" em nossa memória, para nunca mais se apagarem.
Permanecem como indeléveis tatuagens. De mansinho, como que não queiram nada,
nos invadem e tomam conta das nossas emoções, que ficam à flor da pele (com a
ajudazinha do álcool, é verdade). Costumam, como diz o excelente poeta e saudoso
amigo Mauro Sampaio, no poema "Surdina", "invadir a alma de mansinho/e não
assustar as estrelas/que iluminam a saudade".
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Como você imagina que a Lapa seja a mesma, eu a imagino outro universo se comparada ao que você viveu lá. São 55 anos de mudanças, mas o resgate feito ficou belo.
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