Monumento
no encontro das águas: a cara de Ajuricaba
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Quando tomar posse, em
2017, um vereador recém-eleito de Manaus (PTN, vixe, vixe) quer propor a
construção no Encontro das Águas de um monumento a Ajuricaba com 30 metros de
altura, algo similar à Estátua da Liberdade ou ao Cristo Redentor. Retoma assim
antigo projeto de Amazonino Mendes no auge do delírio megalomaníaco do
"terceiro ciclo de desenvolvimento", uma fase vaga, imprecisa e
eleitoreira da história do Amazonas que ninguém lembra mais. Diante dessa
notícia que circula nas redes sociais, decidi atualizar crônica publicada em
1996, já que vinte anos depois o mesmo impasse persiste.
É que nenhum
desenhista da época retratou Ajuricaba, o cacique dos Manáo morto pelas tropas
portuguesas em 1727. Por isso, ninguém pode saber hoje que rosto ele tinha. Isso
criou um dilema atroz que torturou a cúpula terceiro-ciclista e seus aliados:
qual cara deve ter a estátua que será erguida no mirante do encontro das águas,
cuja maquete já foi até encomendada pelo valor de 100.000 reais?
Nos arquivos, não
existe qualquer ilustração, desenho ou gravura com o retrato do herói. O acervo
iconográfico dos portugueses não possui uma estampa, uma figurinha, um simples
santinho que reproduza sua fisionomia. Ele não teve sequer uma verônica para
enxugar-lhe o suor do rosto com um pano, deixando lá gravada a imagem de sua
face. O vereador do PTN vai ficar com a mesma dúvida atroz do arquiteto
paranaense Angel Walter Bernal, idealizador da maquete:
- Que rosto eu dou
para Ajuricaba?
Mister Cabocão
Na época, a pergunta
deixou em polvorosa os puxa-sacos que jogavam dominó na residência do
governador Amazonino Mendes. Todo mundo se ofereceu como modelo, imaginando os
dividendos eleitorais que a imagem podia render. A coluna
"Taquiprati" - não é a primeira vez - conseguiu burlar a segurança e
colocou um gravador, que registrou para os leitores tudo o que se falou naquela
noite.
- O Ajuricaba sou eu.
Pode começar a tirar o molde de gesso - disse o secretário de Comunicação
Ronaldo Tiradentes, oferecendo sua proverbial cara-de-pau. Ele garantiu que se
fosse o escolhido, faria pessoalmente as instalações elétricas para iluminar o
monumento, o que representaria enorme economia para o Estado, caso a
Eletronorte não ouvisse os miados dos felinos enjaulados.
O deputado Átila Lins
discordou. Para ele, o herói não pode ficar solitariamente no mirante. Precisa
da companhia familiar: papai Ajuricabão, mamãe Ajuricabona, manos Ajuricabóides
e sobrinhos Ajuricabinhas. Átila cedeu sua cara de lua cheia para representar
Ajuricaba, solicitando pagamento de um cachê similar ao do tenor José Carreras
para sua família figurar no monumento: mana Ceiça, mano Belão, sobrinhos,
aderentes e xerimbabos.
- A melhor imagem da
tribo Manáo - ele disse - é a Tribulins.
Houve reação
generalizada contra as duas propostas. Alguém - no gravador não deu para
identificar a voz - falou que o Alferes e o Átila tinham o physique du rôle.
- O Átila é muito
gordo: a estátua aquática de um guerreiro barrigudo e, em consequência, peidão,
não tem base histórica. Vai produzir borbulhinhas no encontro das águas. Os
turistas vão debochar. Quanto ao Alferes Tiradentes, o único ponto em comum com
o herói indígena é que ambos nunca sentaram nos bancos da escola secundária.
Tiradentes é mineiro, com cabelo cacheado. Ajuricaba tem que ter cabelo liso,
cara de amazonense, de caboco.
- Oba! É comigo mesmo
- gritou o deputado Ézio Ferreira que, num concurso de "Mister
Cabocão" obteria, sem sombra de dúvida, o primeiro lugar. Ézio segurou o
espeto de churrasco como se fosse uma lança e posou declamando:
- Por Ajuricaba eu
mato, por Ajuricaba eu morro!
Com uma calculadora,
Ézio começou a fazer as contas do orçamento, incluindo os 20% de propina,
tomando como referência o cachê pago a cantores contratados a peso de ouro por
Amazonino. Depois, convidou todo mundo para uma tartarugada em sua mansão, onde
a questão poderia ser discutida com mais tranquilidade.
- Negativo! Caboco por
caboco, eu também o sou - contestou o deputado Lupércio Ramos, colocando o
pronome no lugar certo pela primeira vez em sua vida. Mostrou uma gravura de
1785 da Expedição Alexandre Rodrigues Ferreira, onde aparece um índio Mura
inalando paricá.
- É a minha cara -
exclamou Lupércio, brandindo o documento histórico.
Branco e terno
Foi quando o
"historiador terceiro-ciclista" Berinho Braga, o sempiterno
secretário de cultura de qualquer governo, jogou um balde de água fria,
esclarecendo que ambos - Lupércio e Ézio - tinham dentes de ouro, o que
atrapalhava as pretensões de cada um, porque um índio do séc. XVIII não podia
usar prótese.
Alfredo Nascimento - o
cabo Pereira - até então calado, colocou ordem na confusão, exigindo:
- Precisamos definir o
perfil do modelo que queremos para a estátua.
- Pardo e brabo -
pontificou Berinho.
- Branco e terno! -
gritou Amazonino.
Berinho, que sempre
concorda com quem manda, corrigiu-se em cima do lance:
- Era exatamente o que
eu estava querendo dizer. O modelo de Ajuricaba deve ser alguém branco, que
mostre ternura em sua fisionomia.
Amazonino que acabava
de bater a partida de dominó com a pedra "branco e terno", ligou-se
na conversa e sentenciou:
- Ajuricaba tem de ser
alguém com cara de caboco e expressão de guerreiro, um amazônida de verdade.
- Guerreiro com cara
de caboco! - assentiu Berinho. - Esse é o perfil que eu estava tentando
desenhar.
- Então sou eu.
Ajuricaba sou eu - reivindicou Pauderney Mandado, o homem da mala preta.
Berinho olhou
Pauderney, olhou Amazonino, viu que os dois primos eram muito parecidos. No
entanto, obedientemente concluiu:
- A discussão está
encerrada. A estátua de Ajuricaba terá a cara amazônica, guerreira e viril de
Sua Excelência, o governador Amazonino Mendes.
-
Bzxxixxiibzxxxxxxxx
Ih, leitor (a)! Que
azar! Descobriram o nosso gravador. Esse ruído que você acabou de ouvir é fruto
de um misturador de vozes. A fita, a partir deste trecho, está incompreensível.
É uma pena, porque outras pessoas se ofereceram como modelo: é possível imaginar os argumentos apresentados por Omar
Aziz, Eduardo Braga, Euler Ribeiro e seus afilhados César Bonfim, José Melo
Merenda e tantos outros.
Algumas perguntas
finais: a estátua reproduzirá apenas o busto de Ajuricaba ou o corpo inteiro
como o Arariboia em Niteroi? Se for o corpo inteiro, a nudez será inevitável.
Suas "responsabilidades" serão mostradas como nas estátuas gregas? E
o modelo, meu Deus, quem será o modelo?
Um monumento sempre
significa outra coisa mais do que é. Tem um sentido alegórico. O que é que a
estátua de Ajuricaba vai simbolizar? O que se quer dizer, através dela, para a
população local e para os turistas? Uma última pergunta: quem vai construir o
monumento aquático? Se o sambódromo, que foi erguido em terra firme e em solo
consistente, desabou, o que acontecerá com um monumento aquático? Ajuricaba
corre o risco de morrer afogado pela segunda vez.
- "É a última
ideia beócia do Amazonino" - escreveu a jornalista Mônica Bérgamo na
revista VEJA.
Última por enquanto.
Que o diga o vereador do PTN.
*
Jornalista, professor e historiador.
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