Comércio com fantasmas
A correspondência entre escritores
constitui importante acervo de informações sobre sua vida, seus gostos, suas
idéias, suas idiossincrasias, suas amizades e até (ou, quem sabe,
principalmente) suas inimizades. Após sua morte, tornam-se, não raro, preciosa
coleção de documentos, onde seus biógrafos, via de regra, se abastecem, para
explicar determinadas passagens da sua vida. Estão aí as cartas escritas e
recebidas por Fedor Dostoievski, Mário de Andrade, Monteiro Lobato e tantos
outros, transformadas em livros, alguns verdadeiros best-sellers.
Antes do advento do e-mail, escrevi (e
recebi) poucas cartas. Preguiça minha, claro! Por causa dessa inércia,
afastei-me de amigos muito queridos, aos quais prezava muito e de quem perdi
contato. Pena! Ademais, a maioria da minha correspondência se perdeu nas várias
mudanças de casa por que passei, até
adquirir a atual, em que resido, e que jamais pretendo me desfazer. Por conseqüência, esse enorme acervo tornou-se
irrecuperável. Puro relaxo meu, que prometo não mais repetir!
Passei a ter consciência da importância
de conservar minha correspondência para a posteridade apenas de uns dez anos
para cá. Desde então (aprendi a lição), arquivo todos os e-mails, tanto os que
escrevo, quanto os que recebo (claro, aqueles que possam conter informações
úteis aos meus eventuais futuros biógrafos).
Tive o capricho, também, de digitar, e
arquivar na memória do computador, as cartas que se salvaram da destruição, ou
do extravio, ou então da perda, não importa. Infelizmente, restaram poucas
delas para contar a história. Estimo que dois quintos (ou menos) das que recebi
(ou que escrevi) foram recuperados. E estas últimas só escaparam de se perder
por causa do hábito que sempre cultivei de escrever cartas com cópia.
A correspondência que consegui
preservar melhor foi a que mantive com o jornalista, poeta, conferencista,
acadêmico e extraordinária figura humana, Maurício de Moraes, já falecido,
mineiro de Ouro Fino, cidade que, aliás, preserva a sua memória. Não faz mais
do que a obrigação! Afinal, esse meu querido e saudoso amigo amou, como
ninguém, sua pequenina, mas acolhedora terra natal, que perpetuou em magníficos
versos e em marcantes crônicas.
O que consegui salvar, todavia, foram
apenas 16 cartas que lhe escrevi (a primeira, datada de 12 de janeiro de 1993 e
a última, de 20 de julho desse mesmo ano). Pelos assuntos que comento com o
poeta, dá para deduzir algumas coisas que ele me escreveu, no seu estilo
lírico, mas sempre bem-humorado. Aliás, o bom-humor e o otimismo sempre foram
características marcantes de Maurício de Moraes. Era uma pessoa que nunca vi
triste. Vivia em outro mundo. Com ele não tinha “tempo quente”, como diz o
povão. Tinha uma espécie de filtro na mente e só enxergava o lado belo e nobre
da vida. Teve, por conseqüência, influência marcante no meu comportamento e na
minha mentalidade, notadamente nas muitas crises existenciais que atravessei (e
superei).
A primeira das cartas que lhe escrevi
começa assim:
“Campinas, 12 de janeiro de 1993
Caro amigo e
irmão de ideais Maurício:
Espero
que esta carta o encontre gozando de paz e saúde, na companhia dos seus. Antes
de tudo, quero penitenciar-me por minha imperdoável falta de delicadeza, ao não
retribuir a tempo o seu gentil cartão de boas festas, com mensagem tão profunda
e emocionante, que só pode sair, mesmo, da alma, da sensibilidade e do talento
de um grande poeta, como você é.
Você
sabe que a amizade que diz ter por mim é recíproca. Nem precisava dizer, não é
mesmo?! Você tem certeza disso! Afinal, não nos conhecemos ontem. Aliás, devo
confessar que o considero, se não o único, pelo menos um dos raros verdadeiros
amigos que me restaram. Muita gente me jura "eterna" e desinteressada
amizade. Mas na hora do vamos ver...É puro interesse! Deixa pra lá!
Concordo
com você quando observa que não deixa de ser estranho o fato de dois amigos,
que se gostam tanto e que residem na mesma cidade, se comunicarem apenas por
carta. Mas você sabe do meu empenho na profissão. Não tenho tempo nem para
respirar! (...)”
A última das cartas que lhe escrevi e
que consegui preservar tem este início:
“Campinas,
20 de julho de 1993
Amigo
Maurício:
Nesta
terça-feira gelada, com os termômetros das ruas da cidade marcando cinco graus
centígrados, sinto-me como se estivesse na Sibéria. Ainda assim, dez horas da
noite, concluído o meu trabalho, sento-me diante da familiar máquina de
escrever, com os dedos enregelados, para dar continuidade ao nosso interminável
"papo epistolar".
Melhor
seria, claro, se estivéssemos cara a cara, em casa ou em algum desses tantos
bares aconchegantes que ainda há em Campinas, com um copo de bom uísque
(digamos, um Jack Daniel's 12 anos, por exemplo), "cowboy" (isto é,
sem gelo e sem soda), nas mãos, a trocarmos confidências, falando da vida, do
trabalho, da cultura e, principalmente, de literatura, nossa mútua paixão. Como
isso não é possível, é melhor nos contentarmos mesmo com essa troca de cartas,
para sabermos notícias um do outro e até para fazermos pequenas "fofocas"
(por que não?!).
Primeiro
vou falar da minha saúde, que tanto vem preocupando o amigo. Não se preocupe!
"Vaso ruim não quebra", como diz o povão. O fato de eu ser chorão
impressiona algumas pessoas. Afinal, "quem não chora, não mama". Mas
tenho uma resistência física "cavalar". Não é qualquer achaquezinho
besta que me derruba.
Apesar
de me sentir cansado (devo estar com a imunidade muito baixa e com algum foco
infeccioso no organismo), estou razoavelmente bem. A conjuntivite cedeu quase
por completo, embora a acuidade visual do olho direito tenha ficado muito
reduzida. Não faz mal! Se a natureza quer assim, ficarei caolho! O que fazer?!
É o preço que devo pagar por tantas e tantas horas de leitura e de texto.
Aliás, é um tributo irrisório para tamanho prazer intelectual. (...)”
As cartas eram extensas, com média de
dez páginas de vinte linhas, em espaço dois. Eram descontraídas e brincalhonas,
como deve ser a correspondência entre dois amigos. Os que as leram juram que só
essas 16 que se salvaram dariam um livro interessante. Bondade deles. Não
chegam a tanto.
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Tenho algumas cartas salvas e impressas de amigos virtuais de 16 anos atrás e que continuam amigos, porém sem as correspondências de antes. Devemos ter nos cansado ou nos desinteressado, ou ambos. Os e-mails saíram de moda, assim como o telefone fixo. Tudo (bem menos agora)vem pelo WhatsApp e telefonemas apenas em casos muito sérios, daí exigir atendimento imediato.
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