Santa Letícia
* Por
Marcelo Sguassábia
Letícia, em seu
compartimento estanque, se bastava. Vivia debaixo de uma campânula guardada por
um querubim estrábico, numa imunidade vitalícia às dores do parto, à lavagem da
louça, às filas nas repartições e à rabugice dos maridos sovinas e dominadores.
“Façam o que quiserem, contanto que poupem a Letícia” era o veredito invariável
sob qualquer pretexto e em qualquer ocasião, naqueles sítios de lagartos e
desgraças.
Nada que se comparasse
àquela que chamavam de Letícia, e que raras vezes se afastava de seus cães e de
sua coleção de abajures. Era o tesão das rodas regadas a cerveja. Era a inveja
e o assunto nos salões de beleza. Era o exemplo de virtude no sermão do padre,
que botava as duas mãos no fogo do inferno e uma terceira se tivesse pela sua
inteireza de caráter.
Assim a vida corria
daquele jeito de costume, com a cidade a lhe estender tapetes, a lhe levar no
colo e a lhe cobrir de afagos, soprando-lhe o dodói antes que se machucasse.
Passou a ser o tema das redações escolares e o samba-enredo dos blocos e
escolas no carnaval. Recebeu, da câmara dos vereadores, o título de Cidadã
Benemérita, mesmo não tendo feito benemerência alguma. Nos dias cívicos, subia
ao palanque e fazia sombra ao poder constituído. Sem que soubesse, pois
provavelmente a coisa se articulava na surdina para lhe fazer surpresa, era
tida como certa a aprovação da mudança do nome do município para Leticiópolis.
Para Letícia, só boas
novas. Que não viessem a ela com problemas e aborrecimentos. Poupassem-na de
boletins com notas menores que dez, da morte súbita de entes queridos, do
furacão em Guadalupe e suas 2774 vítimas. Para o olhar e a degustação de
Letícia, só as bem-aventuranças, os objetos desinfetados e as obras-primas
consagradas pelo tempo. Só os heróis condecorados por ações de bravura, só o
mais entorpecente incenso da Pérsia. Conhecer Letícia e jogar-se sem reservas
aos seus pés era o ticket para o paraíso. Para isso organizavam excursões e
vigílias à sua porta, na esperança de vê-la de relance. E nessa tietagem havia
respeito, pois ninguém ousaria pedir-lhe um autógrafo ou uma foto ao seu lado.
Sabiam que Letícia era exclusiva das molduras e altares, a ela faziam novenas e
promessas embora ninguém a tivesse nomeado padroeira ou benfeitora. Na verdade,
daquela boca de 28 anos quase ninguém ouvira palavra, e quanto mais muda
Letícia mais ensurdecedora era a sua adoração.
Quando souberam que
naquela manhã havia sido vista, sem motivo aparente e por um cochilo do
querubim estrábico, nas imediações da estação ferroviária, correram esbaforidos
o bispo, o promotor de justiça, o prefeito safenado, o grão-mestre, o diretor
do colégio e o presidente do clube. Mas o trem chegou mais rápido e a encontrou
nua, deitada nos trilhos.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Letícia e o trem, algo que lembra vagamente Geny e o Zepellin, só que uma é virtuosa que se suicida e a outra é pecadora, que salva toda a cidade.
ResponderExcluir