Renúncia como suprema prova de amor
A renúncia – a um cargo de qualquer natureza que tenhamos
condições de exercer bem, ou a uma vocação inequívoca com as qual poderíamos
nos realizar ou a uma pessoa que amemos extremadamente e de cuja
correspondência tenhamos plena convicção – é um sintoma de fraqueza,
manifestação de burrice ou ato de covardia, como muitos afirmam sem pestanejar
(e sem refletir)? Da minha parte responderia: depende. Do que? Das tais das
circunstâncias, tão bem tratadas pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset,
que volta e meia trago à baila. Quando nos referimos a renúncia de um amor, as
opiniões se dividem. Uns acham que se deva lutar por ele sempre, às últimas conseqüências
e não desistir dele jamais. Outros entendem que renunciar é não apenas válido,
dependendo das circunstâncias, como nobre, se isso for o melhor para a pessoa
amada. Insisto, porém, na minha opinião original: depende.
A escritora Simone de Beauvoir, por exemplo, escreveu: “Renunciar
ao amor parece-me tão insensato como desinteressarmo-nos da saúde porque
acreditamos na eternidade”. Como contraponto, porém, cito trecho da memorável crônica
do saudoso escritor Artur da Távola, intitulada “Amor é enigma?”, em cujos
primeiros parágrafos escreveu: “Optar é renunciar. Entregar-se, por exemplo, a
um amor é abandonar outros. E, do que se renuncia e abandona, pode provir,
depois arrependimento. Afastar-se de um amor, ainda que, opção feita por
lúcidas razões, pode gerar, adiante, a frustração pelo que se deixou de viver. Os
casos de amor vivem rondados por frustração ou arrependimento. Não o amor, que
é íntegro, irrefutável, cristalino e indubitável: mas os amantes seus
portadores. Quase sempre o tamanho do amor é maior que o dos amantes”.
E por que trago hoje esse assunto à baila? Porque uma das
personagens femininas inesquecíveis da literatura mundial conquistou (e segue
conquistando) corações e mentes de leitores mundo afora exatamente por amar
tanto a um homem que renunciou de ficar ao seu lado, por entender que se o
fizesse, apenas o prejudicaria. Refiro-me a Margarita Gautier, a protagonista
do romance “A dama das camélias”, de Alexandre Dumas Filho, celebrizada tanto
no teatro, com suas inúmeras montagens, quanto no cinema. Entre 1906 e 1980,
por exemplo, essa dramática história já foi tratada em doze filmes, além de
dezenas de adaptações para a televisão. Inspirou, até mesmo, uma ópera famosa,
de autoria de Giuseppe Verdi, no caso “La Traviata”, na qual foi mudado, apenas,
o nome de Margarita Gautier para Violetta Valéry.
Li esse romance, pela primeira vez, há exatos 59 anos, em
1956. Reli-o, dia desses, até para redigir estes comentários e o livro
despertou-me, agora, a mesmíssima emoção de quando eu era adolescente. O
curioso é que ouço, vira e mexe, em conversa com amigos, que Dumas Filho
exagerou na dose ao criar essa personagem; que ela não é verossímil; que não
existe mulher alguma que aja, tenha agido ou possa agir como Margarita e vai
por aí afora. Atribuo essas observações a certa desinformação de quem as faz.
Não existe alguém como “a dama das camélias”?! Pelo menos já existiu. O romance
em questão, para quem não sabe, é, em boa parte, autobiográfico. Alexandre
Dumas Filho viveu um caso de amor bastante parecido com o que descreve, com
mudanças aqui e ali, mas bem próximo do que relatou. Margarita Gautier existiu, sim,
mas seu nome de verdade, o de batismo, era Marie Dupleissis. Tratou-se de
conhecida cortesã parisiense.
O escritor, aliás, conhecia como poucos os meandros de amores
extraconjugais. Afinal, era fruto de um deles, por ser filho ilegítimo (que o
povo chamava, sem nenhum pudor, de bastardo) do então já famoso romancista
Alexandre Dumas, o autor de “Os três mosqueteiros”. Custou para ser aceito pelo
pai. Pior ainda, foi batalha inglória ser aceito pela sociedade. Imaginem o
quanto não ouviu sobre sua origem, quantos gracejos e ofensas gratuitas,
principalmente insultos voltados à sua mãe!!! Eu imagino e não posso nem de
longe cogitar sobre qual seria minha reação caso estivesse em situação
semelhante. No mínimo, desafiaria os ofensores para um duelo, o que era comum
na época, e possivelmente (ou provavelmente) seria ferido de morte por algum dos
desafetos.
Para quem não se lembra, ou não leu o livro (nem assistiu à
peça e a nenhuma versão cinematográfica) explico que a história é ambientada na
Paris de 1848, que vivia mais uma de suas tantas revoluções O romance é narrado,
em várias partes, por uma terceira pessoa e após a morte de Margarita Gautier,
conhecida como a “dama das camélias” (por razões óbvias), vitimada pela
tuberculose. Trata do seu “affaire”, com o jovem estudante de Direito Armando
Duval. O moço integrava uma família aristocrática de Paris. Apaixona-se,
todavia, pela cortesã Margarita, a despeito da intolerância de sua família e do
imenso preconceito social e fazia mirabolantes planos para o futuro ao seu lado.
Todavia... esta renuncia a esse amor,
para desespero do rapaz, convencida que era o melhor que poderia fazer para
garantir um futuro melhor para seu amado. Fica claro que Margarita renunciou a
Duval não porque não o amasse ou que amasse de forma insuficiente. Fê-lo exatamente
pelo contrário.
Com todo o respeito ao autor de “Os três mosqueteiros”, mas
o filho superou, em muito, o pai, e com um único livro, sobretudo pela coragem
que teve de fazer de sua experiência pessoal uma obra-prima literária e de
assim nos legar uma das personagens femininas realmente inesquecíveis da
literatura mundial de ficção. Ensinou-nos, sobretudo, que dependendo das
circunstâncias, a renúncia, volta e meia, pode ser (e de fato é) suprema prova
de amor.
Boa leitura.
O Editor.
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Este comportamento costuma ser raro na vida real, mas existe em obras literárias e cinematográficas, que eu não saberia mencionar quais, pois me recordo de forma distante.
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