A
mulher Soledad, o cabo Anselmo e o filme Sentimentos que curam
* Por
Urariano Mota
Eu relutei muito em
falar. Evitei até onde foi possível escrever, nem que fosse o mínimo, sobre o livro “Minha verdade”, do cabo
Anselmo, cujo título lembra “Minha luta”, do mais famoso Hitler. Mas uma
crítica ao filme “Sentimentos que curam”, lida na Folha de São Paulo da mais
recente quinta-feira me despertou. O despertar se deu no seguinte passo:
“O filme foi uma
oportunidade para o ator Mark Ruffalo, conhecido pelo engajamento social, de
discutir uma de suas principais bandeiras: o feminismo.
Como pano de fundo,
está o debate sobre a decisão de Maggie (Saldana) de deixar as filhas
(temporariamente) para avançar em sua carreira. ‘A situação dos tempos modernos
é: alguém precisa deixar a família para ganhar dinheiro, não importa se é o
homem ou a mulher’, diz Ruffalo.
Mas não é um incômodo
que a discussão ainda seja atual, mesmo depois de 40 anos desta história?
‘Sim, é um atraso que
ainda estejamos tendo essa conversa. Mas acho que estamos progredindo no
direito das mulheres. Nós já viramos a chave –e, mesmo que as pessoas lutem
contra isso, não vamos retroceder’."
Então eu me perguntei:
o que dizer das mulheres que deixaram os filhos, temporariamente, para lutar
contra as ditaduras, sem ganhar qualquer dinheiro, pelo contrário, para perder
a própria vida? O que dizer dessas mulheres? Essas perguntas me chegaram porque
sei do veneno que plantaram contra Soledad Barrett Viedma, quando ela se viu
obrigada ao dever da militância socialista, brava, voluntariosa, deixando a
amada criança em Cuba para vir ao Brasil. Esse foi um veneno administrado 2
vezes contra a guerrilheira: em vida, para angustiá-la em noites que lhe davam
acessos de psoríase, e em morte, quando injuriam a sua memória junto a pessoas
a quem mais amou.
Sempre desconfiei de
que os reclamos a um sentimento materno que teria deixado de existir em
Soledad, logo ela que sonhava em voltar a Cuba e retomar a filha que havia
deixado com uma companheira de luta, Damaris Lucena, vinham de uma fonte
interessada em difamar. Eis a fonte.
Do livro Minha
Verdade, do Cabo Anselmo, copio os trechos e faço breves comentários:
“Eu a conheci em Cuba,
quando juntou-se com um dos marinheiros do meu grupo, José Maria, de apelido
Boêmio, violeiro, um moço afável, com quem gerou uma filha. Vez por outra nos
reuníamos e pude fotografar a criança, Ñasaindy, uma bela menina, até os
primeiros passos... “
Comentário: linda a
ternura em relação à filha, não? Diria, até: linda e verdadeira. Mas antes vem
um ato falho: Soledad “juntou-se com um dos marinheiros”. Leram bem, juntou-se. Ora, juntar, juntam-se
bois, animais, cachorros, porcos. Pessoas namoram, amam ou casam. Mas não nos
percamos. Adiante.
“Quando o irmão, Jorge
Barrett, chegou de visita, os intervalos de alegria espontânea e de bem-estar
se multiplicaram. Pairava sobre nós uma realidade, uma segunda vida sobre a
qual nada podíamos decidir. Diante dos insucessos lidos, ouvidos e comentados,
diante da esmagadora realidade de um terreno e um povo diferenciado e que não
estava ‘maduro’ para a guerra civil, o propósito futuro era que ela voltasse a
Cuba, para criar a filha que havia abandonado aos cuidados do governo cubano,
na companhia de brasileiros da VPR...”
Olhem só: “...para
criar a filha que havia abandonado aos cuidados do governo cubano”. Mas Soledad
não abandonou a filha. Ela se viu obrigada a um sacrifício máximo, pela
urgência da luta, a deixá-la nas mãos de uma operária brasileira, da maior
dignidade e confiança. Ela não entregou a filha ao Estado cubano, ou à
opressão, como Anselmo quer dizer. Mas continua o ataque no livro, neste ponto
mais preciso:
“Soledad chegou a São
Paulo pouco tempo depois. O que justificava a decisão daquela moça para
abandonar o refúgio seguro, deixando a filha aos cuidados do Estado cubano?
Somente o fanatismo ideológico, a lavagem cerebral efetuada na Universidade
Patrice Lumumba, em Moscou, para onde eram enviados os filhos de dirigentes dos
partidos comunistas. Foi ali que Sol recebeu o treinamento para atuar a serviço
do comunismo em qualquer parte do mundo.
A família, por
princípio, ocupa um lugar sem importância no universo emocional do
revolucionário, mera referência de origem. Pais são abandonados, como esposas,
filhos, irmãos, amigos. Para isso Soledad fora treinada...A covardia e o
fingimento estiveram presentes em momentos cruciais. Covardia por esconder
minha posição íntima. Fingimento, dançando conforme a música, focado em
preservar a vida de muita gente que seria vitimada se os projetos dos que hoje
governam se concretizassem...”
Nas palavras de
Anselmo, na construção que ele faz: primeiro, Soledad abandona a filha;
segundo, ela faz essa canalhice por fanatismo ideológico, treinada que foi na
Universidade Patrice Lumumba, de Moscou – ali se fazia lavagem cerebral ;
terceiro, “A família, por princípio, ocupa um lugar sem importância no universo
emocional do revolucionário, mera referência de origem. Pais são abandonados,
como esposas, filhos, irmãos, amigos”.
Está completo o crime,
de Soledad Barrett, é claro. O agente e traidor sabe que militantes sofrem na
clandestinidade, sofrem e se torturam e se amarguram, viram bichos de solidão
pela distância dos filhos, quando não os têm junto a si. Isso ele viu, mas fala
do que lhe é mais vantajoso, Soledad, a executada por sua entrega, é a
criminosa. Assim como outros, os terroristas, que ele entregou para salvar
a democracia brasileira, etc.etc;etc.
Mas aqui neste ponto,
ele alisa a ferida:
“Em que consistia a
delação?” – Sim, queremos saber. E ele continua, sem responder:
“Escandaliza-nos que Anselmo tenha dito, em determinado momento, que teria sido
responsável pela prisão de 200 pessoas. Simplificação da imprensa. ...
Muito se fala do José
Anselmo dos Santos que entregou a companheira para a morte na Chácara São
Bento, mas ninguém se lembra de Soledad Viedma, que, junto com outros
militantes, condenou o companheiro à morte naquele mesmo dia....”
É mentira – que bem
poderia ter sido verdade, se os militantes soubessem que: 1 Daniel, o nome que
usava, era o cabo Anselmo; 2- que o glorioso Anselmo se havia tornado um
auxiliar e admirador de Fleury.
A crítica à luz da
história, a merecedora crítica esse livro ainda não teve em nenhum lugar da
imprensa. Mas ressalto por enquanto esta contribuição que ele traz, contra as
próprias intenções: o valor de Soledad Barrett é tamanho, que quanto mais é
difamada, mais ela cresce na admiração de todos que a amamos.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Quanta injustiça, esta sim, um dos cânceres do mundo. Pelo menos na parte citada há uma lavação da memória de Soledad. Mais uma vez a História é contada pela ótica distorcida do executor.
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