A inesquecível rebelde criada por
Cronin
“O castelo do homem sem alma”, do escocês Archibald Joseph
Cronin, é um dos romances mais impressionantes que já li. É impossível lê-lo
sem sentir, por exemplo, revolta pelas atitudes e desmandos do personagem
principal, James Brodie, um chapeleiro falido, da cidadezinha inglesa de
Levenford, que tortura, psicologicamente, e oprime a própria família e força-a
a se isolar de tudo e de todos, por julgar que ninguém estava á sua altura.
Nosso primeiro impulso é o de julgar esse protagonista, pintado com cores tão
fortes, nuas e cruas, inverossímil, tamanha sua crueldade. Achamos, num
primeiro momento, que não existe no mundo psicopata tão mesquinho, egocêntrico
e dominador. Todavia... com um pouquinho só de reflexão, acabamos concluindo o
contrário.
Há, sim, por aí, e não são poucos, indivíduos paranóicos que
se julgam suprassumos da perfeição, para os quais ninguém presta, todos têm os
piores defeitos, menos eles, que vivem em permanente estado de beligerância com
o mundo. Vai me enganar que você nunca topou com chatos desse tipo alguma vez
em sua vida, paciente leitor?! Com certeza já topou e nem se lembra, pois
pessoas assim é melhor esquecer. O título original do romance de Cronin é “O
castelo do chapeleiro”. Quem lhe deu o título em português, que cabe como uma
luva ao livro, foi sua tradutora Rachel de Queiroz, que fez, aliás, primorosa
tradução.
O enredo destaca ostensivamente, como num luminoso de neón
intenso e gritante, o protagonista chave da história, James Brodie, que ofusca
todos os demais. Quatro personagens femininas orbitam ao seu redor, oprimidas
por ele, que nem tem o menor escrúpulo em arruinar suas vidas, sendo que uma
delas considero inesquecível. Pelo menos é a que não consegui esquecer.
Refiro-me à filha mais velha do cruel psicopata, Mary. Quem leu o romance
entende porque Rachel de Queiroz decidiu dar o título de “O castelo do homem
sem alma” à versão em português do romance. É o mínimo que se pode dizer de
James Brodie.
As personagens femininas, reitero, são quatro. Uma delas, a
mãe do psicopata, é a que menos sofre. Não que ele a poupe dos seus desmandos,
longe disso. Ocorre que devido à senilidade, a anciã nem se dá conta do que
ocorre ao seu redor e das atitudes do filho, que arruínam, irremediavelmente, a
família. Santa alienação! A segunda protagonista, Margareth, a esposa, vive
angustiada com o que acontece na família, incapaz de fazer qualquer coisa
prática para proteger os filhos, notadamente as filhas, já que se dedica
obsessivamente ao único garoto do clã, Matt, o qual teria “estragado”, conforme
acusação do marido. Mimou-o em excesso, tornando-o fracote. Por isso, ele
envereda por caminhos, digamos, tortuosos. Margareth sente, simultaneamente,
angústia e ódio pelo marido, sentimento, no entanto, que reprime e que mantém
apenas entranhado na alma.
Personagens femininas inesquecíveis, nesse romance, de fato,
são duas, as irmãs Nessi e Mary, e por razões talvez opostas, com
preponderância desta última, por sua personalidade forte e independente e pela
preocupação em, de alguma forma, proteger os irmãos dos desmandos do tirânico James.
Ela foi a que mais sofreu, desde a infância, com o comportamento anormal dos
pais. Teve que se virar sozinha, sem amparo e sem afeto de ninguém. Nessie, por
exemplo, era a queridinha do pai, por quem ele nutria doentia paixão. Era a
mais esperta dos filhos. Na escola, tirava as melhores notas. Era orgulhosa e
sabia o que queria. Para James, era a única que poderia sustentar o sobrenome
Brodie, com honra e com dignidade. Com essa finalidade, ele encarregou-se, pessoalmente,
da educação da menina, proibindo a mulher de se meter para não estragar Nessie,
“como já havia estragado Matt”.
Mary, todavia, desde muito criança, teve que se virar
sozinha. Não teve o interesse do pai, com fixação até doentia na irmã mais
nova, e nem da mãe, que só tinha olhos para o único filho homem. À certa
altura, rebela-se e sai de casa. Mas retorna, enfrentando as conseqüências do
seu ato (tendo que ouvir toda a sorte de recriminações), na vã tentativa de
proteger os irmãos. O grande mérito de Archibald Joseph Cronin foi o de criar
personagens “vivos”, com sangue, nervos e vísceras, com comportamentos e
paixões como qualquer um de nós tem. Inúmeras famílias mundo afora vivem dramas
parecidos, ou até piores, sem que nem mesmo tomemos conhecimento. E pensar que
o médico estressado – escreveu a obra quando teve que ir para as montanhas para
buscar cura para um esgotamento nervoso – era “marinheiro de primeira viagem”,
já que “O Castelo do homem sem alma” foi o primeiro livro que escreveu!
Em suma, trata-se de uma história em que tirania e submissão
convivem, lado a lado, no mesmo espaço. Cronin escreveu, a certa altura:
"A vida não é um corredor tranqüilo e reto pelo qual nós, seres humanos,
andamos todos os dias, livres e sem qualquer empecilho, mas um labirinto de
passagens, pelas quais nós devemos procurar nosso caminho, perdidos e confusos,
de vez em quando presos em um beco sem saída. Porém se tivermos fé, uma porta
sempre será aberta para nós, não talvez aquela sobre a qual nós mesmos nunca
pensamos, mas aquela que definitivamente se revelará boa para nós". Em
suma, por suas virtudes e defeitos, por sua coragem e humanidade, Mary Brodie é,
sim, personagem feminina inesquecível, neste memorável romance de estreia de
Archibald Joseph Cronin.
Boa leitura.
O Editor.
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Numa noite de chuva a moça grávida é jogada no meio da rua pelo pai, se me lembro bem. Vilania levada às ultimas consequências. Conheço vários homens assim, com tintas mais ou menos pronunciadas.
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