Troca da Medicina pela Literatura
O escocês Archibald Joseph Cronin – nascido em Cardross, em
19 de julho de 1896 – tem uma trajetória de vida no mínimo pitoresca. Fez, por
exemplo, uma escolha que poucos fariam. Trocou a Medicina, que cursou com
imenso sacrifício, pela Literatura que, salvo exceções, não permite que alguém
viva com conforto e tranqüilidade financeira. Muito pelo contrário.
Constituiu-se, todavia, em uma dessas raras exceções. Deu-se muito bem como
homem de letras. Descobriu essa vocação quase que por acaso. Como tinha talento
para escrever, tornou-se romancista dos mais consagrados até sua morte,
ocorrida na cidade suíça de Montreux, em 6 de janeiro de 1981, seis meses antes
de completar 85 anos de idade. Confesso que, por mais que goste de Literatura
(e gosto demais!), eu não faria essa troca em hipótese alguma. Admito, todavia,
que cada caso é um caso. Mas... contemos
essa história com um pouquinho mais de ordem e de coerência.
Cronin mostrou-se um filho amoroso e leal. Perdeu o pai
ainda quando criança, quando coube à mãe, mulher guerreira, no melhor sentido
da palavra (o figurado) a manutenção da casa. Casou-se muito jovem, mas o casamento
durou pouco, com a morte da esposa Como
a mãe não conseguisse sobreviver sozinha, não teve dúvidas: sem vacilar, voltou
à casa materna dois anos depois de enviuvar, para ajudá-la a sobreviver com
dignidade. Cronin, apesar das dificuldades financeiras, tinha um sonho: cursar
Medicina. Diga-se a seu favor que era bom aluno. Porém, não tinha dinheiro para
cursar o que tanto queria.
Com muito esforço, e principalmente ajudado financeiramente
por um tio, entrou, finalmente, na faculdade. E, em 1919, aos 23 anos de idade,
formou-se médico. Qualquer outro se daria por satisfeito com esse sucesso.
Afinal, fora uma conquista que compensou todos os sacrifícios feitos. Serviu
algum tempo como cirurgião a bordo do Royal Navy. Após esse estágio, passou a
atender em consultório próprio, no País de Gales, para onde se mudou depois do
novo casamento. Tudo indicava que sua vida profissional estava resolvida. Não
tardou para ser nomeado Inspetor Médico de Minas e a começar a empreender
estudo detalhado das doenças que afetavam os mineiros de carvão.
Sujeito sensível e aplicado, vivia aflito com as péssimas
condições sanitárias do lugar. O que mais o incomodava era o fato de não
conseguir dar conta das doenças causadas pelas condições insalubres das minas,
sobretudo a silicose. Foi tamanho seu empenho, e foram tantas as frustrações
que passou, além da imensa quantidade de casos que tinha que tratar, que não demorou
para Cronin entrar em um processo de esgotamento, tanto físico, quanto
psicológico. Pudera! Ninguém é de ferro! Com a saúde abalada, viu-se obrigado a
dar um tempo nas suas atividades médicas, retirando-se para as montanhas, em
busca de ar puro e de tranqüilidade. Foi aí que o acaso atuou e mudou sua
trajetória de vida por completo.
Possivelmente por “hobby”, para preencher o tempo ocioso,
Archibald Joseph Cronin começou a escrever um livro. E, logo de cara, um
romance! O texto fluiu. Quase sem perceber, redigiu uma história de mais de 400
páginas, uma temeridade para veteranos, imaginem para um “projeto de escritor”.
Surpreendentemente, descobriu ser detentor de um estilo agradável, atrativo,
gostoso de ler. Foi assim que nasceu o romance “O castelo do homem sem alma”. É
desses livros que, apesar da quantidade de páginas, não cansa. Você quer logo
chegar ao desfecho, ao final, sem nem mesmo perceber que leu tanto. Para
surpresa geral, o romance foi estrondoso sucesso de crítica e de público.
Cronin resolveu dar mais um tempo na Medicina. Não tardou para vir um segundo
romance. Afinal, o sucesso do primeiro poderia não passar de “sorte de
principiante”. Mas não foi.
O livro “Sob a luz das estrelas” confirmou o sucesso de “O
castelo do homem sem alma” (que no Brasil recebeu primorosa tradução de Rachel
de Queiroz). Foi, inclusive, vendido a um grande estúdio de cinema. Nascia,
ali, magnífico romancista. A redação do terceiro livro, “A cidadela” (o mais
polêmico, mas para mim o melhor de todos os que escreveu), apenas confirmou que
ali estava um dos mais completos ficcionistas do século XX. Alcançou êxito
retumbante. Foi então que Cronin decidiu renunciar de vez à medicina, para
viver exclusivamente de sua produção literária. Eu não tomaria essa decisão.
Tentaria conciliar as coisas e exercer, simultaneamente, as duas atividades
que, aliás, nem mesmo são incompatíveis. Nosso (saudoso) Moacyr Scliar fez
isso. Tornou-se magnífico escritor sem abrir mão da Medicina. Mas...
É aquela história do “em cada cabeça uma sentença”. O
prestígio de Cronin cresceu mais ainda quando, com a eclosão da Segunda Guerra
Mundial, mudou-se com a família para os EUA. Findo o conflito, fixou-se na
Suíça, sem nunca parar de escrever (e de fazer sucesso). Foi um caso raro em
que a Literatura permitiu a alguém se sustentar e ganhar mais do que talvez
conseguiria como médico. Talvez, sabe-se lá! Todavia, correu um risco que,
reitero, eu jamais correria. O saudoso escritor e teólogo Rubem Alves (de cuja
companhia tive o privilégio e a honra de privar, tanto no Correio Popular de
Campinas, quanto na Academia Campinense de Letras), escreveu, em um de seus
tantos textos: “Amo a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação
bela e fraca”. Todavia ponderou, com o bom senso que o caracterizava: “O
escritor tem amor, mas não tem poder”. E não tem mesmo, sobretudo no Brasil. Archibald
Joseph Cronin fez uma “troca” que dificilmente dá certo para alguém, mas que
para ele deu. Optou pela Literatura, em detrimento da Medicina. E se deu bem!!!
Boa Leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Conheci Cronin com Cidadela, através da minha colega, hoje anestesista, Margarida Batista, no 1º ano de medicina.
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