Salvando estranho da inanição com o
próprio leite
O escritor norte-americano John Steinbeck foi uma das
figuras mais fascinantes da Literatura mundial. Seu romance “As vinhas da ira”,
publicado em 1939, praticamente dividiu um país, no caso os Estados Unidos,
dada a denúncia que contém da deslavada exploração do homem pelo homem. Uma
grande parcela de pessoas (óbvio, a dos “exploradores”) opôs-se ferozmente
contra ele, adquirindo milhares de exemplares de seu livro, mas não para
lê-los, mas para queimá-los em praça pública, como se idéias pudessem ser
destruídas pelo fogo ou por qualquer outra forma. Claro que não podem. Todavia,
outra parcela, suponho que muito maior (no caso a dos “explorados”, ou dos que
por razões éticas, ou conceituais ou humanitárias e lógicas, opunham-se a essa
exploração), findou por consagrar seu tão polêmico romance, que hoje é,
praticamente, unanimidade, não apenas nacional, mas mundial.
Escrevi muito sobre John Steinbeck e também sobre essa
obra-prima ficcional de todos os tempos. “As vinhas da ira”, que por algum
tempo enfrentou tão feroz oposição, valeu, tempos depois, os principais prêmios
literários existentes ao seu autor, desde o National Book Award, passando pelo
Pulitzer de ficção e culminando com o Nobel de Literatura de 1962. Hoje, todas
as relações dos 100 melhores romances de todos os tempos – como, por exemplo,
as da revista Time, da The Daily Telegraph, da Modern Library, da Le Monde e da
BBC, entre tantas outras – incluem, sem pestanejar, esse livro e com distinção.
Nem poderia ser diferente. Além disso, ele é lido com freqüência nas aulas de
Literatura dos ensinos secundário e universitário norte-americanos pelo seu
contexto histórico. Só quem não entende nada do riscado não admite que se trata
de magnífica obra-prima, quer pela forma como foi escrita, quer, e
principalmente, pelo conteúdo.
Na crônica que escrevi em 19 de janeiro de 2010, intitulada “Ainda
Steinbeck”, observei: “No que esta obra se distingue das demais, de outros
escritores, ou mesmo deste? Na verossimilhança com a realidade da história
narrada. Na convicção com que o autor trata de assunto tão delicado (tanto que
os originais manuscritos não têm quase rasuras, acréscimos e cortes, o que
demonstra que a história foi escrita como que num único “sopro”). Na linguagem
sóbria e equilibrada de Steinbeck. Eu poderia enumerar ainda uma dezena de
virtudes, mas não o farei. Deixo isso por sua conta, na leitura desse memorável
romance”. Hoje eu acrescentaria que “As vinhas da ira” se distingue das demais
obras também pelos personagens que o autor criou. E, sobretudo, pela protagonista
feminina, para mim absolutamente inesquecível, no caso Rosa de Sharon, uma das
integrantes da família Joad.
À minha revelia, estou convicto que a menção dessa figura,
exercendo papel principal na história, vai gerar polêmica. Já gerou com as
pessoas com quem comentei a respeito. A argumentação é de que Rosa de Sharon
não passa de figurante no enredo, que é citada pouquíssimas vezes e que não
interfere na trama central do romance. Quem afirma isso tem certeza do que está
afirmando? Duvido! Essa opinião expressa, mesmo que remotamente, a intenção do
autor? Duvido mais ainda! Tanto essa personagem é importante, diria
fundamental, no romance, que Steinbeck encerra “As vinhas da ira” com uma ação
dela, tão abnegada, que raia à inverossimilhança. Para não haver dúvidas a
propósito, transcrevo esse encerramento do romance, exatamente como o autor o
fez.
Antes, contudo, cabem mais estas observações, que fiz na
crônica “Ainda Steinbeck”: “Poucos escritores teriam a coragem de terminar um
livro dessa forma. E os que se arriscassem, dificilmente deixariam de resvalar
para a pieguice. Nos parágrafos finais do romance, Steinbeck narra que a
família Joad – esfacelada e desfalcada pela morte dos avós, pela fuga de Tom,
que para defender um trabalhador, agrediu um guarda que o espancava e se tornou
foragido da justiça, e pela morte do bebê, que Rosa de Sharon deu à luz –
abrigava-se, precariamente, da enchente que atingia a região e afetava,
sobretudo, os acampados, em um barracão abandonado.
Os refugiados “oakies” não tinham para onde ir e sequer o
que comer. Muitos morriam de fome, outros estavam doentes e alguns agonizavam
Num canto, um deles estava morrendo de inanição. Rosa de Sharon havia acabado
de ter o bebê, que morrera a seguir. Estava com os peitos repletos de leite. E
não teve dúvidas. Em cumplicidade com a mãe, teve um gesto de suprema abnegação
e solidariedade. Deu os seios para o moribundo mamar e dessa forma conseguir
sobreviver”.
E Steinbeck descreve exatamente assim a dramática e solene
cena, com que encerrou o romance:
“-Sciu! – fez Mãe.
Lançou olhares a Pai e tio John, que estavam contemplando o doente. Olhou Rosa
de Sharon, envolta no cobertor. Seus olhares fugiram dos de Rosa de Sharon e
tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo nas respectivas almas. A
moça ofegava, respirava com um ritmo curto e apressado.
Ela disse:
- Sim.
Mãe sorriu:
- Eu sabia. Eu sabias que tu me compreendeu. – Olhou as mãos
enlaçadas com firmeza sobre o colo.
Rosa de Sharon disse baixinho:
- Saiam vocês todos... por favor. – A chuva fustigava
fracamente o teto.
Mãe inclinou-se sobre a filha e com a palma da mão afastou
as mechas revoltas que lhe caíam sobre a testa e lhe deu um beijo na testa.
- Bom, andem depressa, vão saindo – disse Mãe, pondo-se de
pé. – Fiquem aí fora um pouquinho.
Ruthie abriu a boca para dizer qualquer coisa.
- Sciu! – fez Mãe. – Fica quieta e vá saindo, -
Empurrou-a porta afora, e o mesmo fez com os outros. Por
fim, pegando o menino pela mão, também saiu, fechando a porta guinchante atrás
de si.
Por um minuto, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no centro do
galpão, em cujo teto cochichava a chuva. Depois ergueu-se pesadamente,
enrolando-se mais no cobertor. Lentamente, dirigiu-se ao canto escuro e
quedou-se a olhar o rosto sofredor do desconhecido, lendo-lhe nos olhos
arregalados e cheios de temor. Então, com vagar, dobrou os joelhos e deitou-se
ao lado dele. O homem esboçou um movimento negativo com a cabeça, um movimento
fraco e muito lento. Rosa de Sharon desfez-se do cobertor, deixando os seios
desnudos.
- Tem que ser – falou, aproximando-se mais dele, e
puxando-lhe a cabeça a si. – Assim – disse. Apoiou-lhe a cabeça com a direita e
seus dedos lhe sulcaram suavemente os cabelos. Ergueu os olhos e seu olhar
percorreu o galpão escuro e seus lábios cerraram-se e ela sorriu
misteriosamente”.
Ufa! É de tirar o fôlego! Ou não é? O que dizer, depois de
ler uma descrição como essa? É coisa de gênio! Só mesmo um escritor genial,
como John Steinbeck (que se confessava admirador do russo Fedor Dostoievski)
consegue dar absoluta verossimilhança a uma cena e, principalmente, a uma
atitude tão inverossímil e improvável como esta! Qualquer comentário a mais
seria supérfluo e redundante. Só posso acrescentar, a título de desafio aos que
me contestam: Rosa de Sharon é ou não é personagem feminina inesquecível? Como
esquecer um gesto de tamanha abnegação? Só os insensíveis, ou os muito burros,
não valorizam atos como este e esquecem quem os protagonizou.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Para dizer o mínimo: chocante!
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