A menininha que vendia fósforos...
O conto de fadas “A pequena vendedora de fósforos” tem, como
protagonista, uma personagem feminina absolutamente inesquecível. É uma
criança, adianto. Poderia ser minha filha, a sua ou, quem sabe, nossa neta. Em
sua simplicidade, essa é uma história sumamente tocante, diria pungente, dessas
que uma pessoa sensível e humana e, sobretudo de bom gosto, não se esquece jamais.
Eu nunca a esqueci. Nem poderia! Não me recordo qual o adulto que ma narrou,
quando eu tinha sete ou oito anos. Mas me lembro, como se estivesse ouvindo
agora, palavra por palavra do enredo, verdadeiro poema em prosa, que considero
uma das páginas mais lindas da Literatura mundial.
Com o passar dos anos, li e reli várias vezes esse conto e
decorei-o até, palavra por palavra. Não por acaso, seu autor, Hans Christian
Andersen, é considerado, com toda a justiça, mito literário em sua terra natal,
a Dinamarca. Considero-o, mais do que autor de contos de fadas, magnífico poeta.
Criou beleza mesmo onde só existia, e sempre existiu, feiúra. Empolgo-me quando
trato dele. Pudera!
Para quem não sabe, (ou se esqueceu), informo (ou lembro)
que a data de seu nascimento, 2 de abril (de 1805, na cidade dinamarquesa de
Odense) foi estabelecida como o “Dia Internacional do Livro Infanto-Juvenil”. Justíssimo!
Afinal, ele foi o pioneiro nesse gênero, que só recentemente passou a ser
devidamente valorizado. Desconfio que, se na sua época o Prêmio Nobel de
Literatura já existisse, Andersen seria premiado. Bem, certeza, certeza mesmo
não tenho, pois nem sempre os encarregados na atribuição dessa prestigiosa
premiação mostraram muito critério. Mas que o escritor dinamarquês mereceria
ser premiado, disso tenho absoluta convicção. Foi um gênio, que encheu de
sonhos e fantasias a infância de muita gente ao redor do mundo (e a minha
também, claro).
O maior prêmio de literatura infanto-juvenil da atualidade
presta-lhe homenagem. Refiro-me à “Medalha Hans Christian Andersen”, atribuída
anualmente pela “International Board on Books for Young People (IBBY)” aos
melhores autores mundiais de histórias do gênero. Escrever para crianças,
cativá-las, prender sua atenção e penetrar seus corações e mentes é um desafio
dos maiores. Não é qualquer escritor, por genial que seja, que consegue tal
façanha. Tal tarefa requer, sobretudo, sensibilidade para entender a psicologia
infantil. Mais quer isso, exige estilo simples e despojado, sem, no entanto, descambar
para o simplório. Requer sentimento, muito sentimento brotando por todos os poros,
sem resvalar, logicamente, para a pieguice. Enfim, é um desafio, que poucos,
pouquíssimos estão preparados para enfrentar com sucesso.
Para que o leitor entenda por que relaciono a pobre e
desvalida menininha que vendia fósforos na noite gélida de uma cidadezinha
dinamarquesa, entre as tantas personagens femininas inesquecíveis da literatura
mundial, peço-lhe licença para transcrever, na íntegra, o conto de Hans
Christian Andersen, em que ela é a protagonista. Pena que, por mais que tenha
tentado, não consegui descobrir o nome de quem o traduziu (e muito bem, por
sinal).
“Fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro;
a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão uma pobre
menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas.Quando saiu
de casa trazia chinelos; mas de nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para
seus pézinhos, eram os antigos chinelos de sua mãe. A menininha os perdera
quando escorregara na estrada, onde duas carruagens passaram terrivelmente
depressa, sacolejando. Um dos chinelos não mais foi encontrado, e um menino se
apoderara do outro e fugira correndo. Depois disso a menininha caminhou de pés
nus - já vermelhos e roxos de frio.
Dentro de um velho avental carregava alguns fósforos, e um
feixinho deles na mão. Ninguém lhe comprara nenhum naquele dia, e ela não
ganhara sequer um níquel.
Tremendo de frio e fome, lá ia quase de rastos a pobre
menina, verdadeira imagem da miséria! Os flocos de neve lhe cobriam os longos
cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em lindos cachos; mas agora ela não
pensava nisso. Luzes brilhavam em todas as janelas, e enchia o ar um delicioso
cheiro de ganso assado, pois era véspera de Ano-Novo. Sim: nisso ela pensava!
Numa esquina formada por duas casas, uma das quais avançava
mais que a outra, a menininha ficou sentada; levantara os pés, mas sentia um
frio ainda maior. Não ousava voltar para casa sem vender sequer um fósforo e,
portanto sem levar um único tostão. O pai naturalmente a espancaria e, além
disso, em casa fazia frio, pois nada tinham como abrigo, exceto um telhado onde
o vento assobiava através das frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.
Suas mãozinhas estavam duras de frio. Ah! bem que um fósforo
lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um do embrulho, riscá-lo na parede e
aquecer as mãos à sua luz! Tirou um: trec! O fósforo lançou faíscas,
acendeu-se. Era uma cálida chama luminosa; parecia uma vela pequenina quando
ela o abrigou na mão em concha... Que luz maravilhosa!
Com aquela chama acesa a menininha imaginava que estava
sentada diante de um grande fogão polido, com lustrosa base de cobre, assim
como a coifa. Como o fogo ardia! Como era confortável! Mas a pequenina chama se
apagou, o fogão desapareceu, e ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo
queimado.
Riscou um segundo fósforo. Ele ardeu, e quando a sua luz
caiu em cheio na parede ela se tornou transparente como um véu de gaze, e a
menininha pôde enxergar a sala do outro lado. Na mesa se estendia uma toalha
branca como a neve e sobre ela havia um brilhante serviço de jantar. O ganso
assado fumegava maravilhosamente, recheado de maçãs e ameixas pretas. Ainda
mais maravilhoso era ver o ganso saltar da travessa e sair bamboleando em sua
direção, com a faca e o garfo espetados no peito! Então o fósforo se apagou,
deixando à sua frente apenas a parede áspera, úmida e fria.
Acendeu outro fósforo, e se viu sentada debaixo de uma linda
árvore de Natal. Era maior e mais enfeitada do que a árvore que tinha visto
pela porta de vidro do rico negociante. Milhares de velas ardiam nos verdes
ramos, e cartões coloridos, iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam
voltados para ela. A menininha espichou a mão para os cartões, mas nisso o
fósforo apagou-se. As luzes do Natal subiam mais altas. Ela as via como se
fossem estrelas no céu: uma delas caiu, formando um longo rastilho de fogo. "Alguém
está morrendo", pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que
amara e que agora estava morta, lhe dissera que quando uma estrela caía, uma
alma subia para Deus.
Ela riscou outro fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua
luz, a avozinha da menina apareceu clara e luminosa, muito linda e terna.
- Vovó! - exclamou a criança.- Oh! leva-me contigo! Sei que
desaparecerás quando o fósforo se apagar! Dissipar-te-ás, como as cálidas
chamas do fogo, a comida fumegante e a grande e maravilhosa árvore de Natal!
E rapidamente acendeu todo o feixe de fósforos, pois queria
reter diante da vista sua querida vovó. E os fósforos brilhavam com tanto
fulgor que iluminavam mais que a luz do dia. Sua avó nunca lhe parecera grande
e tão bela. Tomou a menininha nos braços, e ambas voaram em luminosidade e
alegria acima da terra, subindo cada vez mais alto para onde não havia frio nem
fome nem preocupações - subindo para Deus.
Mas na esquina das duas casas, encostada na parede, ficou
sentada a pobre menininha de rosadas faces e boca sorridente, que a morte
enregelara na derradeira noite do ano velho.
O sol do novo ano se levantou sobre um pequeno cadáver. A
criança lá ficou, paralisada, um feixe inteiro de fósforos queimados. - Queria
aquecer-se - diziam os passantes. Porém, ninguém imaginava como era belo o que
estavam vendo, nem a glória para onde ela se fora com a avó e a felicidade que
sentia no dia do AnoNovo”.
Como não se emocionar com a pungente beleza desse poema em
prosa?!!! Como esquecer aquela criança pobre, desamparada, sem a devida
proteção que merecia?!!! Como não se impressionar e não se comover com aquela
menininha inocente que acreditava, em sua infantil ingenuidade, que
simplesmente acendendo os fósforos, de que fora encarregada de vender, haveria
luz mágica que a arrebataria para o infinito, para o céu, para junto da pessoa
que tanto amava e que um dia a amou?! Sim, paciente leitor, como?!!!!
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Não eram fósforos, eram fósforos, mágicos, uma espécie de pó de pirlimpimpim.
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