O tabu homossexual de Maria
* Por
Urariano Mota
Maria buscava um amor
que, apesar de jamais admiti-lo em consciência, fosse à semelhança do irmão. Ao
modo e aparência de Maciel, o gêmeo, um homossexual sem alarde. E com isso, no
seu ideal, também se cruzam vários caminhos, ou, se quiserem, o seu ideal era
um cristal de muitas faces. Numa delas, na mais evidente, o amor conforme
Maciel era um homem que a respeitasse, à pessoa de Maria, pois que ela era uma
pessoa, acima de tudo.
Em sua melhor imagem, antes
de se apresentar como mulher, ela se queria uma pessoa. O que para um homem,
nesse vê-la como uma pessoa, seria um contato assexuado, indigno de um macho,
para Maria era um plano de mais conforto e ambição, ver-se no espelho como
gente humana, antes do sexo. Ela possuía suas razões, além das mais dignas e
gerais.
Com Maciel, com o
irmão, com o seu gêmeo de alma, ela falava e se fazia ouvir, ela ouvia e se
permitia ouvir. Ou seja, havia entre eles, macho e fêmea, uma igualdade de
planos e terreno. Ela o queria porque a ele falava. Ele a queria porque a ela,
sua igual, ele falava, se ouvia, se respeitava. Ao diabo que era Maciel,
baixinho, necessitado, pois a procurava por não ter onde comer, almoçar, num
tempo em que a carga feroz contra homossexuais era mais perseguidora, dentro do
inferno em que já estavam os homens pobres e pequenos, a esse pobre-diabo ela
não via, porque punha no seu lugar um homem de ternura e bigodinho, de voz
suave, que a ouvia e escutava. Que lhe importava se esse Maciel não seria nem
era capaz de se levantar contra a selvageria do marido? Não havia problema,
porque para isso ela própria tinha força e ânimo para responder. Mas ao não ver
o pobre-diabo em Maciel não lhe ocorria propriamente uma cegueira, uma miopia
mágica, de não ver nada do que todos viam. Ela não era cega nem louca. Apenas,
apenas, aquelas características informadas por todos Maria punha sob outros
valores. Ela respondia à infâmia de outros parentes contra o irmão:
– Ele é uma pessoa de
coração, ele sente.
“Ele me ama”, ela
queria dizer. E o que mais desejava o seu peito que ser amada, ainda que num
terreno íntimo, particular, privado, mesmo que fossem xifópagos separados? Que
viessem os bárbaros, que viessem os tártaros, ela os atacaria por mais de um
flanco. No entanto é claro, numa outra face do prisma, esse amor à semelhança
do respeito fraterno era um amor de possibilidades. Ou, numa aproximação da
face nua e limpa, era um amor vicário, que não se satisfazia no vicariato. E
por isso pegava dele características que seriam uma graça dos céus, mas passava
por elas e seguia mais longe. Pois além de uma pessoa, pessoa geral, Maria era
uma pessoa específica, certa e determinada mulher. Ela queria ser desejada e
tomada e vista e acariciada como Mulher. Sim, com maiúscula no calor do seu
desejo e imaginação. E, coisa estranha, apesar de Maciel ser modelo para seu
coração, ele não a poderia satisfazer por um duplo impedimento. No menor deles,
que Maria na consciência se falava ser o maior, ele era o seu irmão. “Está doida?
Coisa de doido. Nem pensar”. E aqui, mesmo que não possamos esperar dela atos e
percepções além do seu tempo e cultura, a narração pode e deve falar de Maria o
que a sua pessoa não enxergava. Ou não queria ou não podia ver.
Em sonhos, há muito,
ela estava com o marido, à hora do almoço, e ele, o marido, de forma a mais
carinhosa alisava-a com os pés sobre os pés dela, subia com eles em suas coxas,
rodeava com o dedão o seu sexo, ao que ela respondia, entre o abandono ao
pezinho do marido:
– O que é isso? Os
vizinhos podem ver.
A isso o seu marido,
de pele escura, bem escura, sorria com um bigodinho que ela adorava, que a
deixava sem forças para reagir com força, com raiva. Ah, que raiva ela se
sentia possuída por não reagir contra aquela obscenidade! Mas como reagir
àquele antiFiladelfo? Pois apesar de todos os traços exteriores, cor, cabelo,
voz, olhos, apesar de toda anatomia de Filadelfo, aquele homem com quem ela
almoçava no sonho era terno, delicado, atencioso, pois até nos pés a ouvia como
ela desejava. Havia ali, apesar de, sempre “apesar de”, apesar da presença
física de Filadelfo, havia ali o marido em sua negação. E, dividida, Maria
olhava aquela cena como se estivesse em um plano mais alto, a pairar sobre os
dois na mesa, entre a “safadeza” de sua pessoa, pois não retirava brusca aquele
dedão pecaminoso – sim, aquilo era um pecado -, e o desejo de afeto que o dedão
continha. Era um pé ternura. Era um pé, que sendo sexo, pois era duro e tentava
penetrá-la, era também um carinho, porque a rodeava, enredava, sim, a enredava
a ponto de a deixar em rede de pesca, e a enredava também porque lhe contava
enredos, fuxicos, bisbilhotices, enquanto a alisava nos pelos íntimos, tão
íntimos que existiam antes até de serem pelos. Aquele Filadelfo, se o encarava
bem, ou se a encarava, era másculo e feminino, macho e fêmea, Filadelfo e
Maria. Então o sonho ia se desenvolver, e Maria não deixava, ela não o queria,
pois sabia aonde o sonho a levava, levaria, o sonho ia tornar o pé em ponte de
ligação, que encolhia, que se desenvolvia pelo desaparecimento, como, coisa
estranha, como um crescimento que some, algo de mecânica impossível, a não ser
que o pé crescesse por sumir dentro dela. E o desenvolvimento de tal absurdo
era Maria abraçada a Filadelfo, amalgamada e fundida nele como uma estátua de
bronze em uma praça, enquanto Filadelfo lhe sussurrava, “sabe, Maria?”, e tão
confortável e conhecida há muito era a voz, que a Maria soava com um conteúdo
de “sabe, mana? sabe, maninha?”, um absurdo absoluto, pois ela acordava ao lado
de um corpo estranho à sua intimidade.
Então ela não poderia
saber, ou – muro imperioso – ela não devia saber, porque era porta vedada a seu
desejo: a pessoa de Maciel como irmão era o menor impedimento. O incesto era
uma vedação de costumes, de cultura do tempo, uma vedação ao pensamento dos
dias. Então lhe vinha um breve pigarro, como a engolir algo áspero. Porque o
desejo, naquelas aprisionadas circunstâncias, era livre como projeto. De um
ponto de vista anatômico, eram macho e fêmea, ou, engulho ou salvação maior,
eram macho e fêmea nascidos de mesmos ventre e hora. Que mais intimidade,
pecaminosa, bendito pecado, haveria? De um ponto de vista, digamos, funcional,
todas as condições estavam dadas para o sucesso da vicária felicidade. Eles,
ela e ele, em estatura e gênese se completavam. Vistos de um modo cru, os seus
corpos eram harmônicos na acidental variedade da natureza. Maria e Maciel Deus
os criou. Ali não havia um obstáculo, digamos, objetivo, se de um modo
grosseiro nos expressamos. Escrevemos o adjetivo “grosseiro” porque os
impedimentos na ideia, na formação de uma pessoa, também são um impedimento
objetivo, mesmo que não se apresente como um muro de pedra. Mas se separamos,
sempre com um método brutal, corpo e alma, matéria e espírito, o incesto não
era o limite do proibido: “pecado, Maria, pecado, Maciel”. Mas com pecado,
ainda que mortal, ainda que impulso animal sem freio, a penetração era
possível. Poderia até ser penetrada pelo sonho, para melhor consumação da
vitória sobre o impedimento. Não. Aqui o horror era passável, passável assim
como o cirurgião se acostuma ao sangue, assim como o açougueiro se acostuma às
vísceras do boi, do porco, assim como o carniceiro se acostuma ao corte sobre
pessoas vivas. Esse não era o impossível.
O impedimento era o
lado fêmeo de Maciel, que Maria notava e sob valores mais altos dele não tomava
conhecimento. Mas uma coisa era o irmão lhe ser solidário, afetuoso, digno,
amorável sob o bigodinho. (Infernal bigodinho que não a deixava em paz no sono
nas noites solitárias.) Ah, bigodinho querido, outra coisa era aquele pé
interno, íntimo, se transformar em pênis. Outra coisa maior era aquele pênis
ficar inchado, crescido e lançado pelo desejo que tivesse o irmão fêmeo. Essa
era a vedação objetiva, até mesmo pela visão grosseira. E aqui, mais uma vez, é
preciso determinar a grosseria. O ponto crucial não era que Maciel fosse
incapaz de ter ereção com mulher, qualquer mulher, até mesmo contra a irmã.
“Sem problema”, ele diria. “Eu também sou macho”, podia completar, sem qualquer
bazófia. Sim, isso nele era possível. Assim como são possíveis os desastres, os
terremotos, os cânceres, as doenças incuráveis, a ereção nele por uma mulher
era possível. Dir-se-ia até, como uma prova de macheza, e aqui de novo as
palavras para serem compreendidas exigem um espaço humano para sua melhor
definição, Maciel possuía ereção com mulheres. E tal macheza queria dizer:
domínio de vontade, fazer-se algo contra a vontade, suportar a dor no limite da
resistência. Essa, a macheza. Mas como, se a ereção em héteros não existia por
vontade, como em um ser homo ela se dava por algo miraculoso, à semelhança da
meditação zen?
Sim, largo e em voltas
espirais é o engenho humano: Maciel conseguia ter ereção no processo de se
fazer fêmea para a mulher que estivesse a seu lado. Como uma abstração
realizável, assim como muitas vezes se ama uma mulher em lugar de outra, em um
artifício de sonho posto no cotidiano. Em termos mais simples e duros, isso
quer dizer que ao levar uma mulher para a cama, o senhor Maciel, num esforço de
variação máxima, oferecia-lhe as costas. Assim posto, fazia as próprias nádegas
roçarem o clitóris para melhor excitá-la, enquanto ansiava por uma carnosidade
dura no ânus. Desejando o clitóris da desejada, balouçante ele se dava de
costas à mulher, para visualizar no escuro o que procurava. E recebê-la, se por
felicidade a mulher se envolvesse no jogo. Pois fazer assim, chegar a tal ponto
de sacrifício, era sem dúvida, e sem qualquer ironia, uma prova de macheza, se
pela palavra queremos expressar: ter a coragem de enfrentar uma grande
adversidade.
Fora de um ponto de
vista moral, ou melhor, uma vez que esta narração vai além do reproduzir a vida
consciente de Maria: de outro ponto de vista moral, de uma moral mais larga e
funda como um oceano, Maria queria ser amada, e se possível, de um modo ideal,
apaixonadamente. E para essa justa esperança, o espelho Maciel não a
satisfazia. E por quê? A coisa não se dava naquela possibilidade mínima, ou
máxima, pouco lhe importava, de ereção. Ou de ser penetrada na vagina. Mas os
grandes e pequenos lábios estavam em outro lugar, melhor, em todos os seus
lugares. Ela queria, precisava, é certo, de carinho, de um homem carinhoso até
o ponto da gentileza, aquela à margem de boas maneiras. Alguma coisa que fosse
à semelhança de Maciel, de modos finos – e ao dizer “modos finos” de ser,
pensava em Maciel, mas com um esforço de o apartar de laços de irmão -, e que
fosse ao mesmo tempo de voz grave, máscula, másculo. Melhor, e aqui enorme é o
esforço para não amesquinhá-la, para melhor acompanhar o sentimento de Maria:
ela queria um homem sem macheza, um homem por atos e de ação, que não baixasse
os olhos ao se ver humilhado, que não desse as costas ao inferno de uma irmã.
Mas nesse lugar do seu querer já não estava Maciel. Sem mágoa, porque nesse
passo, como todas as mulheres que na ausência de um homem, vale dizer, na falta
de um ser que aja e vá à frente, assumem o seu lugar, como as mães sozinhas que
fazem as vezes de marido, de um modo heróico e mais efetivo que o substituído,
nesse ponto, sem mágoa, ela crescia para assumir o lugar do irmão, seu igual e
sangue, quando humilhado. Nada demais, sem mágoa. Mas ali já não estava o que
ela queria, como marido e amante, como aquele que ama conforme é amado. E o que
ela queria, afinal?
Assim como Ismália, a
virgem que no poema queria o céu e queria o mar, Maria buscava um homem fêmeo
que fosse macho, mas um macho que fosse mais que pênis, um homem, um homem,
enfim. Um cidadão que abrigasse a mulher que gargalhava até as lágrimas, de uma
certa Maria que ao ficar raivosa dava mostras de raiva inchando as bochechas, a
mulher Maria que era generosa a ponto de dividir o pouco, para ficar depois em
estado de quebrar a cabeça para ter soluções criadoras de sobrevivência. Ela
queria, desejava nada mais, nada menos que a ventura, aventura do toque dos
dedos em seus cabelos, do carinho das pontas dos dedos, em lugar das mãos
calosas que a apertavam antes, antes do gozo que não poderia ser dela. Então, com
Maciel, ela estava com um revólver de brinquedo, uma pequena mauser de
plástico, e queria com tal arma se defender no sentimento. No mundo, mas com
tal arma estava sozinha. Ela era ameaçada por se fazer de armada, ou de amada,
vale dizer, porque os pobres também possuem jogos verbais, porque o amor em seu
sonho aparecia às vezes como uma falsa arma. Amada, armada em falso. Mas que
ainda assim lhe fazia correr sério risco de ser morta, amada em falso, armada
em falso.
Por que não há uma
justiça para os corações? Pois assim como Maria era traída no sentimento,
aquele que traía tinha também o seu merecido quinhão. Haveria nisso um reflexo
fiel dos boleros intragáveis da época, em que alguém chorava por não ser amado
por quem queria, enquanto era amado por quem não desejava? Ou seria, a canção
medíocre, a vulgarização de algo mais grave que o simples
quero-quem-não-me-quer-e-não-quero-quem-me-quer? Talvez haja nisso a verdade de
algo mais preciso: o coração, mesmo quando busca amor, o faz em um caminho onde
se mistura o egoísmo. Porque ele quer aquilo que o conforta, antes de mais
nada. Ele, o coração, não quer para se dar, para se doar, antes. Essa doação se
faz sobre um terreno de benefício próprio. A mulher quer os filhos porque esse
querer a conforta. O homem quer a mulher porque nela vê beleza, e essa, física,
espiritual ou espiritualizada, que lhe faz bem, ele precisa ter junto de si.
Daí que se doa a esse afeto, porque nesse caso dar é receber, perder é ganhar,
pela satisfação que possui quem se dá. Não há, entre amantes, o amor por
filantropia. Então, como haver justiça para os corações? Em que lugar ou tempo
existe a paz para a correspondência justa de amar porque se é amado, ou de ser
amado porque se ama?
*Do romance O filho renegado de Deus, de
Urariano Mota, publicado pela Bertrand Brasil, 2013.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Impressionam o transcorrer das vontades e o se lançar do autor sobre o íntimo de Maria.
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