Making of com Michelangelo
* Por
Marcelo Sguassábia
Vaticano,
quarta-feira, por volta de duas da tarde. Michelangelo dá início ao mais
célebre dos afrescos: o monumental teto da Capela Sistina. Um Cardeal, muito
próximo do Papa Julio II, acompanha o trabalho.
- Deus sabe que estou
pegando esse serviço a contragosto. Meu negócio é escultura, Roma inteira sabe
disso.
- Então serão anos de
penitência. Começando agora, em 1508, o senhor deve terminar lá para 1512.
- Anos de penitência e
de torcicolo. Muito torcicolo. Mas encomenda de Papa não se nega, né? Vou
encarar esse inferno para tentar garantir um lugarzinho lá no céu.
- Desculpe a
indiscrição, mas como você combinou o pagamento? Por dia ou empreitada?
- Por empreitada. Por
dia, nem a Igreja Universal aguentaria pagar.
- Lá isso é.
- Multiplique 365 por
5 e vê só onde é que iria parar essa conta...
- Se me permite o
comentário... esse tom que o senhor deu na unha do profeta isaías. Parece que
tá com micose, tem amarelo demais...
- E essa cor aí, da sua
batina... Tá meio pink, não tá não? Para um cardeal honorável como o senhor,
não pega bem.
- Que heresia! Isso é
desacato à autoridade eclesiástica. Eu só estou querendo ajudar. Papa Julio
provavelmente vai reparar nessa unha esquisita, e é melhor dar uma garibada
agora do que ter que refazer o trabalho depois.
- Tá bom, daqui a
pouco eu cuido disso, Cardeal.
- Michelangelo, eu
vejo que você pincela direto no teto. Não tem um esboço prévio. Os rostos dos
personagens bíblicos vão surgindo na sua cabeça?
- Não é bem assim,
não. No caso do pessoal ficha limpa como Noé, Moisés, Isaac e mais uma pá de
gente boa eu coloco rostos de amigos meus. Agora, quando é o capeta, o Caim e
outros da galerinha do mal, esses ganham rosto de credor, de cobrador de
imposto, de gente metida que não me olha na cara quando me vê na rua, de uns e
outros pra quem eu fiz retrato fiado e nada de pagamento até hoje.
- Mas vai que um belo
dia eles se reconheçam na pintura,
depois de tudo pronto? Entram com um processo na justiça e você perde todo o
serviço. Fora a multa por danos morais.
- Sei...
- Bom, outra coisa:
você solicitou ao setor de compras um estrado de cama de casal e quatro
rodinhas. Não tenho a menor ideia do que isso tem a ver com seu trabalho.
- O estrado é para
colocar em cima do andaime, para que eu possa trabalhar deitado. As rodas são
para movimentar o andaime com mais facilidade. Caso contrário, a cada meio
metro de pintura pronta eu teria que descer do andaime, empurrá-lo um pouquinho
para a frente, escalá-lo de novo e continuar a pintura. Essa sacada quem teve
foi o meu amigo Leonardo, um cara muito engenhoso. Não demora muito pra que
toda loja de material de construção só venda andaimes assim, já com as rodinhas
incluídas.
- Está bem, vou
providenciar.
- Ah, tem um detalhe
importante: o estrado precisa ter um buraco no meio. Essa também foi meu amigo
Leonardo que sugeriu. A gente instala um sistema de cordas e roldanas que leva
bebida e comida aqui de baixo lá pra cima. Dessa forma eu não preciso ficar
subindo e descendo a toda hora. Pelo mesmo buraco pode passar também a comida e
a bebida depois de processada, se é que me entende...
- Assim seja,
Michelangelo. Só avisa o empurrador de andaime quando vier número 1 e número 2
lá de cima, pra ele ficar esperto. Misericórdia, não há cristão que mereça um
castigo desses.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Um diálogo possível entre duas almas impossíveis. Divertidíssimo. Parabéns, Marcelo!
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