* Por Paulo Setúbal
Soldados e viageiros, à roda do fogo, nos pousos, desfiavam, como a chuçar a cobiça dos ouvintes, todo um rol diabólico de maravilhas. Narravam-se coisas embasbacantes. Muita gente contava, debaixo de juras, que havia nas minas tanto ouro, tanto que "no Cuyabá, até as pedras dos fogões, onde se punham as panelas, eram de ouro". Ainda: "para se colher ouro, não é necessário mais do que arrancar touceiras de capim; nela vêm pegadas as folhetas". Grande verdade. O ouro de Cuiabá era todo de aluvião. Andava solto à flor da terra. Por isso, comentando aqueles relatos, afirmava o cronista com justeza: "isto de arrancar-se capim e virem granetes de ouro pegados ás raízes, é certo; foi coisa vista muitas vezes, tanto nas lavras do Sutil, como nas da Conceição".
Mas não ficava só nisso. Havia muitas e incríveis gabolices. Chegou-se mesmo a dizer, "naquelas exagerações fabulosas", que, "no Cuyabá, em vez de grãos de chumbo, serviam-se os caçadores, nas espingardas, de grãos de ouro para matar veados..."
A conseqüência dessas falas espicaçantes era uma só e fatal: canalizar para essas terras, tão fantasticamente abarrotadas de riquezas, densa caudal de aventureiros. E foi, de fato, densa e torrenciosa, a caudal de gente que alagou Cuiabá. Os cronistas, sem excetuar um único, narram com destaque essa desabalada carreira para as minas, "divulgada a noticia pelos povoados (lá diz Barbosa de Sá), foi tal o movimento que causou nos ânimos, que das Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de toda a Capitania de São Paulo, se abalaram muitas e muitas gentes. Deixavam casas e, fazendas, deixavam mulheres e filhos, deixavam tudo, botando-se para aqueles sertões como se fora a terra da promissão ou o Paraíso encoberto em que Deus pôs os nossos primeiros pais".
Cuiabá, não há dúvida, tornou-se a aspiração mais fascinante dos sertanejos. Era a "terra da promissão". De São Paulo, mais particularmente, o êxodo para lá foi verdadeira loucura. Pode-se dizer que, na vila, não ficou homem válido. Partiu tudo. "O que soube, logo que aqui cheguei (mandava dizer ao Rei, numa carta, o governador Rodrigo César) é que tinham ido para aquelas minas mais de dois mil paulistas". Só naquelas lavras, segundo arrolamento, "havia naquele armo (o que espanta!) duas casas de truque, onze fornos e dois mil seiscentos e sete escravos".
Mas todos os forasteiros, brancos e negros, escravos e forros, vindos ali à busca do ouro, chuçados pela só fome das riquezas, não pensavam jamais em lavouras e sementeiras. Parece isso extraordinário, mas é verdade. Passavam dia e noite nas catas. Ninguém tinha tempo para abrir roças. Ninguém tinha tempo para cuidar de criação. Por isso, naquelas lavras, "não havia porcos, não havia galinhas, não havia nada. Faltava o milho em toda a povoação". Os gêneros vinham de fora, lá do longínquo São Paulo, em monção. Mas quase sempre, nos vaivéns terríveis daquelas duras varações — "chegavam as fazendas já podres; morria muita gente de fome".
As coisas atingiam, está visto, preços verdadeiramente fabulosos.
Publicada no livro O Ouro de Cuiabá (1933).
SETÚBAL, Paulo. O ouro de Cuiabá: crônicas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1956. p. 51-53. (Obras de Paulo Setúbal, 8)
• Escritor paulista, imortal da Academia Brasileira de Letras
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