sexta-feira, 13 de julho de 2012

Os gafanhotos


* Por Jair Lopes


Na Bíblia, Êxodo 10, fala-se da praga de gafanhotos que teria assolado o Egito. Então, hoje quando grandes plantações são assaltadas por milhões desses insetos famintos, os quais em poucos dias conseguem devastar milhares de hectares de cultivo, ao imaginário popular é quase compulsório associar essas catástrofes com aquela da passagem bíblica. Quase todos os anos são veiculadas notícias de hordas gafanhotais, ora na África, ora na Austrália ou até nas Américas, porém, quase não se compara essas pragas com o desmatamento. Aquele desmatamento sistemático, continuado e nocivo que, em muitos lugares, detonam as florestas para sempre.

Nasci e vivi até aos dezessete anos em Palmeira, cidade do Paraná que naquele tempo era cercada de pinheirais por todos os lados. A Araucaria angustifolia, mais conhecida como pinheiro do Paraná é, talvez, a árvore mais bonita de nossa flora. É uma sobrevivente, há provas fósseis que já existia há mais de 200 milhões de anos, quando sua população se disseminava do sul até o nordeste brasileiro. Essa bela conífera pode atingir até 50 metros de altura, com um diâmetro de tronco à altura do peito de 2,5 metros. Sua forma é única na paisagem brasileira, parecendo uma taça de champanhe com um longo e delgado cabo. Ocupando uma área original de 200 mil quilômetros quadrados, a partir do século dezenove foi intensamente explorada pelo alto valor econômico da madeira que produz. Também suas sementes são altamente nutritivas, e hoje seu território está reduzido a uma fração mínima, o que, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), coloca a araucária em perigo crítico de extinção.

Pois bem, uma notável concentração de árvores de grande valor comercial é natural que, como cultivares atraem gafanhotos, atraia pessoas, madeireiras e corporações interessadas na exploração de tal tesouro a céu aberto. Em Palmeira não foi diferente, nos anos quarenta do século passado atraiu gafanhotos famintos na forma de madeireiras administradas por gente tão gananciosa por lucros quanto estúpida. Por uma injunção maléfica do destino, os pinheiros de minha terra natal atraíram famílias de madeireiros descendentes de italianos: Malucelli, Cherubim (pronuncia-se Querubim) e Mansani, sobrenomes que podem lembrar aquelas famiglias mafiosas da Cecília e da península italiana.

A Araucária é uma espécie exclusiva da floresta ombrófila mista, isto significa que ela cresce em consórcio com outras tantas árvores desse tipo de floresta, daí, além de seu valor comercial intrínseco, as demais árvores também representam ganhos para os madeireiros. Imbuias, cedros, canelas e outras madeiras usadas na fabricação de móveis encontram-se em abundância entre os pinheiros. Os gafanhotos carcamanos que exploravam os pinheirais tinham como “bônus” as outras espécies a sua disposição, era mamão com açúcar.

Particularmente a Madeireira Malucelli começou suas atividades se estabelecendo na localidade de Três Morros, distante alguns quilômetros do centro urbano de Palmeira, que naquele tempo não passava de um aglomerado de casas de cinco mil habitantes, cuja economia baseava-se na extração de erva mate (Ilex paraguariensis) muito abundante na região. Pois tão logo os pinheiros escasseavam em Três Morros, os gafanhotos, digo, os Malucelli, mudaram sua madeireira para Pinheiral de Baixo, onde nasci. Claro que, também em Pinheiral, a abundância de Araucárias não foi suficiente para manter ocupadas as mandíbulas famintas das máquinas por muito tempo. Lá foram eles com suas serras, machados, tornos, caminhões e prensas para a sede do município. Com essa mudança da indústria vieram meus pais, meus dois irmãos e eu que era um bebê de dois anos.

Morávamos numa casinha de madeira à entrada principal da fábrica como a chamávamos, e de nossas janelas víamos o trânsito dos caminhões que traziam as toras brutas das florestas. Podíamos acompanhar todos os dias os carregamentos dos cadáveres das Araucárias e de outras árvores que adentravam a fábrica para saciar a fome das máquinas e encher os bolsos dos Malucelli. Qualquer pessoa minimamente esclarecida ou que quisesse enxergar, podia perceber que ao ritmo que se devastava, aquelas matas em pouco tempo deixariam de existir. Mas a fome de lucros fáceis era muito grande, as florestas que se explodam. Acrescente-se que os operários que labutavam na fábrica eram mal pagos e seus salários em decorrência de suas jornadas de trabalho traduziam quase trabalho escravo, em total desacordo com as Leis Trabalhistas. Sou testemunha de tal regime porque trabalhei lá. Em virtude de ser menor de idade ganhava metade de um salário mínimo mensal, mas a jornada e a brutalidade do trabalho eram iguais aos de adultos, minha audição está comprometida até hoje por ter trabalhado naquelas serras elétricas de ruído altíssimo sem qualquer proteção.

Bem, então lá estavam os Mansani, Cherubim e Malucelli devastando toda a mata ombrófila das cercanias de Palmeira sem qualquer preocupação com o futuro, talvez incapazes de perceber que estavam comprometendo o futuro de suas indústrias e deles próprios pelo desmatamento irracional. Há quem diga que aquelas atitudes anti ambientais eram necessárias e corretas para o “desenvolvimento” da região. Eu digo que não. Então qual é a solução? Simples demais: plantar. Se os mafiosos, digo, Malucellis e demais empresários, tivessem plantado mudas nos locais que retiravam a madeira, dali a alguns anos as florestas estariam recompostas, as terras continuariam valorizadas e as madeireiras funcionariam com as árvores replantadas, todos ganhariam. Como foi feito todos perderam. Os gafanhotos, digo, os mafiosos, ou melhor, os madeireiros hoje são pobres, indistinguíveis daqueles que eles exploraram, os que para eles trabalharam continuam paupérrimos e a cidade além de pobre não possui mais matas ombrófilas. Mas, como os insetos, os gafanhotos humanos se mudaram para outros locais onde possivelmente tentam explorar outros recursos não renováveis.

• Escritor, autor dos livros “O Tuaregue” e “A fonte e as galinhas”.

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