* Por Urariano Mota
Adianto aqui algumas notas, com muita afoiteza. Se algum valor estas notinhas tiverem, a culpa é do acaso ou da sorte.
Há muita confusão entre ficção e invenção, e haja rima para tamanha falta de imaginação. Olhem, com paciência, olhem. Somente este ponto mereceria um trabalho mais profundo, desenvolvido por mãos bem menos incompetentes que as minhas. Mas com paciência e boa vontade, acompanhem, por favor, olhem, notem e reflitam.
O fato, elementar, de um trabalho de ficção ser absolutamente distinto de um relato objetivo, de um relatório, de um retrato, de uma foto batida por máquina, deu e dá margem a todo tipo de mito e mistificação. Ao comum da gente que sempre "adivinhou", percebeu, viu personagem, narração, como um fiel retrato do autor, os escritores sempre responderam muito bem que a ficção é livre do factual, que, liberta do ocorrido puro e simples, a ficção mais falava a possibilidades que a fatos. Daí se caiu em outro extremo: se assim é, a falar do que não ocorreu, a ficção é puro invento. E o bom escritor, portanto, seria o de poderosa imaginação, porque, afinal, sua obra navega no mundo da fantasia. Etc. etc. etc.
Pensemos. Em nível geral, abstrato, dizemos, cobertos de fatos concretos, que o real é que é inesgotável. O real é o dom supremo. A maior fantasia, a jamais imaginada invenção é a realidade. Para não ir muito longe, pensemos somente neste ser que vemos todos os dias, o homem. E imaginemos se algum deus, se o Deus mais inspirado poderia algum dia inventar este ser fedorento, que ama, defeca, cria e gargalha. Este produto da realidade é que é a maior invenção. Sábio e maravilhoso e profundo e genial é o artista que o vê. Como Cervantes com o Dom Quixote, para citar um só gênio. E quando dizemos real, referimo-nos também às possibilidades disformes, conformes e multiformes do homem e da sua criação. O real é o todo, o real é o absoluto.
Cheguemos agora mais perto da imaginação. É um desastre mais que conceitual, ora ingênuo, ora cínico, ora cênico, ora estúpido, o acreditar que a literatura é obra da pura imaginação, e por imaginação o substantivo implícito, o miserável e empobrecido conceito de que imaginação é o sonhar além, sem lei da gravidade, uma criação acima e fora do mundo. Solta, além de toda e qualquer limitação. Ora, muito bem imagina quem melhor observa. Isso quer dizer, por um lado, que a imaginação sempre se exerce sobre o existente, anterior ao imaginar. Por outro lado, que a imaginação é uma imitação do que antes de si foi criado, mas com um salto, uma descoberta, fruto de uma pesquisa livre. Mesmo quando o artista disso não se dê conta, não perceba, conscientemente. Nenhum homem nem criador se diz, "bem, agora é hora de observar". Ele faz, ele observa, como uma imposição do seu modo de ser. Até mesmo como uma condenação, muitas vezes como um conflito do qual não pode fugir.
Daí que chega a ser estúpido, pueril, o dizer, ou pior, o fazer um livro, um romance, ou o que se queira criar, na vã e fútil crença de que a criação é fantasia, invenção! Por Zeus, não é assim, desde os trágicos gregos, passando por Kafka e Proust, até Hesse, Mann e João Cabral de Melo Neto, não é assim. As pessoas não veem, ou não querem ver, que o grande e vasto mundo criado por Balzac possuía bases sólidas na França das ruas observada. Balzac seguia, perseguia o que no futuro seria personagem. As pessoas não veem, ou não querem ver que Da Vinci perseguia bêbados, devassos, marginais, para mais adiante transformá-los em seres evangélicos. A mais santa e imaculada Virgem Maria tem formas e seios de mulher parideira, será que não percebem? O que é mesmo A Metamorfose de Kafka a não ser a discriminação, o desprezo e vergonha que damos a nossos amados parentes, quando caídos em desgraça? Será que não veem que o Doutor Fausto, de Thomas Mann, não existiria sem a realidade nazista? Os exemplos são infinitos, melhor dizendo, finitos em número, mas tão fundos que parecem não ter fim. O contrário a essa realidade universal, o que poderia ser puro exercício da imaginação, se isso é possível, é sempre um rotundo e acabado fracasso.
Queremos dizer, a literatura para o escritor é um destino, uma determinação de vontade, o desejo de um lugar único, e somente único, não mais que único, sem jamais pensar em qualquer outra riqueza, a não ser esta honra suprema, como por ela enlouquecia Lima Barreto:
"Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras".
Notem o quanto é estranha a frase de Lima do marketing, que se tornou o próprio fazer literário. Há casos, e certamente o exemplo não é só brasileiro, há casos de escritores que recebem resenha e críticas elogiosas antes, bem antes de o livro ser escrito. É uma consagração antecipada, por ovo futuro, que a galinha ainda não pôs nem botou.
Esse fazer literatura, diria melhor, esse "acontecer" literatura, termina por trazer para a escrita o próprio mundo do business, que no Brasil, em se tratando de arte de massas, é voltado para o mundo da música popular e da televisão. O compositor, o astro da telinha, é que é, tão bom ou melhor que a coca-cola: poeta, gênio, galã, ator, conselheiro, guru, modelo, pensador, cineasta, cantor, humorista e, até, acreditem, músico. Nessa ordem. A isso se acrescenta, neste novo tempo: escritor. E acontece então um paradoxo, na melhor das hipóteses uma ambivalência: diante de intelectuais, o astro pop finge que é só escritor. Diante de colegas, afirma que é só artista na mídia. Para ser fiel às suas profundas leituras e formação literária, deveriam se apresentar sob o pseudônimo de Don Diego, o próprio Zorro da Califórnia. Com a máscara, literato. Sem ela, celebridade.
E a literatura, sei que estão perguntando, e a literatura, o que é? Posso responder numa próxima?
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
O título não respondido de todo é para esquentar os tamborins, instigar, provocar. Vamos pensar um pouco, ou muito.
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