quinta-feira, 30 de abril de 2009




Tarde demais (II)


* Por Gustavo do Carmo

Pedro dá um caloroso abraço no pai, Seu Henrique. Eles se sentam à mesa. Ficam frente-a-frente. Henrique, um senhor de setenta anos, cabelos brancos e ralos, pele morena enrugada, principalmente nos olhos cansados, entrega uma carta amassada ao filho:
— Chegou esta carta para você. Eu nem quis ler.
— Mas ela está aberta.
— Foi preciso abrir na revista para que eu pudesse te entregar.
— Tudo bem, deixa pra lá.

Pedro lê a carta, escrita em alemão:

Berlim, 25 de novembro de 2007

O Deutsche Konsult avaliou a sua entrevista e comunica que você faz parte do perfil da nossa empresa. Já enviamos uma carta de recomendação para a embaixada do seu país. Compareça ao consulado alemão em seu estado para obter o visto de trabalho. No prazo de quinze dias enviaremos a passagem aérea para que possa vir à Berlim já como membro de nossa equipe com a remuneração líquida de oito mil euros. Seja bem-vindo!

Cordialmente
Franz Schneider
Gerente de Recursos Humanos - Deutsche Konsult


— O que diz a carta, meu filho?
— O que o senhor acha? Se eu não estivesse cumprindo pena por assassinato neste presídio eu daria pulos de alegria. Mas agora esta carta não tem mais validade nenhuma.
— Ah, meu filho! Pra quê você foi espancar o gerente do banco até a morte?
— Ele me humilhou muito quando me dispensou na entrevista, pai. Eu já estava cansado de não conseguir trabalhar em lugar nenhum. Não vou ficar mais chorando sobre o leite derramado. Matei e preciso cumprir a minha pena. Agora vai embora que o horário de visitas está acabando.
— Fique com Deus, meu filho. Encerrou Seu Henrique resignado, deixando a penitenciária com lágrimas nos olhos. A carta da empresa de consultoria alemã caiu amarrotada sobre milhares de outras correspondências sem finalidade, juntando-se a papéis de bala, maços de cigarros vazios, restos de comida e excrementos físicos no latão de lixo do pátio central.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores.

2 comentários:

  1. Que dor, que solidão, que impotência, quanta frustração! E, no entanto, vivemos todos à beira desse valão na iminência de lá dentro cair. Mais que denúncia, meu caro Gustavo, entendo estas tuas linhas realistas como advertência. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Tudo seria de uma maneira se não fosse de outra. Burramente ainda tentamos voltar, se não atos, pelo menos palavras, mas já passou e não tem volta. Ironia das ironias. Muitas pancadas nos acertam. Pelo menos de algumas conseguimos nos livrar. São as nossas dores dos desprezos do dia a dia. O sentimento vai da humilhação ao ódio. O segundo poderá preponderar e o preço dessa prevelência no caso desse detento foi altíssimo. Forte história.

    ResponderExcluir