terça-feira, 21 de abril de 2009




Simples assim


* Por Laís de Castro


Permanentemente fechada, uma casa morta, fria e sombria como um começo de noite invernoso, as formigas demarcando seus carreiros, as larvas esculpindo seus túneis de torrões em obra de arte inusitada, as paredes por um fio. Quem viveu ali já teve o fio rompido, já se viu centenas destas casas, já se ouviu centenas desses casos, as moradas duram mais que os moradores, na ausência da segunda geração vão se perdendo os pantins, as marquesas, as comadres de porcelana, os séqüitos de gigantescos talheres de prata ou alpaca, haja boca, as bocas pareciam ser enormes, então. Vão se perdendo as vozes que por ali ecoavam e hoje buscam saída entre as telhas redondas e limosas, desarrumadas, as vozes e as telhas, pelo vento, pelo escorrer de águas e lágrimas, num fatal e seqüente pudor da existência.

O precioso pinho de Riga escondido sob camadas e camadas de tinta azuis, verdes e marrons, repintadas e sucessivas, como se sucederam os dias mornos e monótonos, apenas incrustados no calendário, como se fosse obrigatório vivê-los, as portas inventando cada vez uma cor para saciar os olhos mal-focados, ter assunto, as paredes caiadas, que as quisemos sempre alvíssimas, como quisemos o Sagrado Coração de Jesus na sala principal, condenado ad eternum à corrosão por traças.

Os passos trôpegos, as noites negras mal-dormidas, as tosses brancas, como as paredes, lívidas.

Eles se despediram velhinhos, marido, mulher e cunhada concentrados em acertar o ponto e lamber os doces da laranja-amarga que viçava no quintal. Ainda vive a laranjeira, irrelevâncias à parte, sentiu o abandono e deixou secar seus galhos, enferrujar suas folhas, diminuir os frutos que pairam pendurados como velhas bandeirolas desbotadas de festas juninas findas, à espera de que alguém os colha e os transforme num doce, mesmo que seja para ser lambido por desdentadas e corroídas bocas, melhor que ser inútil tomara que de um destes frutos nasça uma nova laranjeira. O fio tênue da vida então se reforçaria, os velhos ressuscitariam e voltariam no tempo. Só o gesto de pousar o olhar sobre a laranjeira menina lhes concederia alguns anos a mais e uma laranja, uma ao menos, seria degustada como o manjar da vida, a sobrevivência da espécie, a série de eventos que a natureza programa e fatalmente cumpre, como uma bola de neve que rola montanha abaixo porque tem em seu destino este rolar e o obedece como dele escrava, simples assim.

* Jornalista desde os 21 anos, quando estreou na tradicional revista Realidade, trabalhou 18 anos na Editora Abril, vários anos na Carta Editorial e outros mais na Azul. Ganhou 3 prêmios Abril, um concurso de contos infantis no Estado do Paraná e é autora do livro de histórias para adultos: “Um Velho Almirante e outros contos”, publicado pelo selo ARX (Siciliano). Atualmente dedica-se apenas à Literatura.

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