terça-feira, 28 de abril de 2009




O reencontro (I)

* Por Risomar Fasanaro


E riam. Riam de tudo. Relembravam passagens engraçadas vividas no colégio de freiras. Todas cantavam no coral e em algumas ocasiões combinavam desafinar os hinos na hora da missa na capela, só para irritar as irmãs.

Na adolescência tinham estudado na mesma classe: Laura, Julia, Bárbara e Mariana. Havia muitos anos que não se encontravam, mas a vinda de Constancia de outro estado, onde morava desde que terminara o colegial, motivou o convite e o encontro na casa de Bárbara, onde a amiga estava hospedada.

Aquele encontro não tinha a feição de quem havia ficado tantos anos sem se ver. Era como retomar na terça a conversa iniciada na segunda-feira, interrompida pela parada do ônibus, no ponto em que uma delas desceu.

A marca das estações que tinham vivido se revelava no blush que se alojava entre as marcas do rosto e no batom que não apresentava o contorno nítido de quando tinham se visto no dia da formatura. Minto, em Mariana o tempo parecia não ter passado. Parecia a mais jovem de todas. E continuava alegre, despreocupada, falando pelos cotovelos, e rindo por qualquer motivo...

Conversavam sobre coisas sem importância: cremes para a pele, receitas culinárias, permaneciam na superfície, quem sabe com medo de entrar e encontrar a escuridão de um túnel extenso demais, até voltar a ver a luz

Não, não falariam do presente. Ou melhor, falariam, mas só sobre o que não lhes trouxesse tristezas: os cursos que os filhos estavam fazendo, o trabalho do marido, o bairro onde moravam. Isso. Os acontecimentos entre o dia em que deixaram de se ver e o daquela tarde, que exigissem o olho no olho em que a dor repercutisse na alma, desses não falariam. Permaneceriam ignorados. Pra que tocar em feridas, quem sabe não cicatrizadas, quem sabe ainda sangrando?

Ao falar da vida íntima, talvez aflorassem decepções, traições, assuntos que as levariam a perceber, que já não eram mais as adolescentes de saia azul-marinho pregueada e blusa branca de mangas compridas e meias 3/4 impecavelmente brancas. Aquelas mocinhas sonhadoras que iam às cartomantes, e sonhavam com Marlon Brando. Não, melhor não provocar o surgimento do escuro e sombrio sótão de Raskolnikoff de cada uma.

Mas, sem que conseguissem impedir, entre um gole de chá, e um biscoito caseiro, a coisa veio à tona. Foi Laura só poderia ser ela, com aquele jeito alegre e espontâneo que perguntou à Bárbara:
-E seu marido? Vocês eram tão apaixonados... Ainda são?

Bárbara demorou um pouco a responder, e naquele instante foi possível perceber que, se às outras não interessava falar sobre os problemas que tinham enfrentado ao longo daqueles anos, a ela não. Ansiava pelo instante de dividir o drama que vivia.
-Não. Não há mais paixão...

E Julia rindo completou:
- É... Depois de um tempo, a coisa fica mais calma. É quando surge o amor. Mais calmo, mas mais profundo, não é? Vocês dois estão nessa fase?
- Até parece – disse Mariana. – É justamente quando a paixão passa a ser amor que a coisa se complica...

Uma delas percebendo que a amiga queria desabafar, a interrompe:
-Deixa a Bárbara falar, Mariana!...

E Bárbara continuou:
-Ele é alcoólatra.
- Alcoólatra, Bárbara?
- Fica quieta, Mariana, vamos deixar Bárbara falar...

E ela continuou:
- Eu quero me separar. Não aguento mais vê-lo se destruindo. Já fizemos de tudo, eu e meus filhos, mas ele não quer se tratar...
- Por que você não o manda embora? – diz Laura
-Porque ele não vai. Já fizemos de tudo, e ele não vai...
- Sobre a separação: seus filhos apóiam?
-Apóiam.
-Ele bebe em casa ou na rua?
-Na rua, claro. Aqui em casa não temos bebidas alcoólicas de espécie alguma.
-Muito fácil, então – diz Laura. - Quando ele sair, vocês trocam a fechadura...
-Não posso fazer isso. Não tenho coragem.

Naquele instante, Julia que tinha parado de falar e agora só ouvia, disse brincando:
-Quando ele estiver bêbado, coloca ele num caixote com cordas e desce pela janela. Depois troca a fechadura da porta. Se separa desse homem. Você não acha, Constancia?

Constancia que desde o início tudo ouvia no maior silencio, se manifestou:
-Não sei, porque eu também sou alcoólatra.

(Continua na próxima semana)


* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.


6 comentários:

  1. As lembranças rejuvenescem e nos dão a real dimensão do tempo, pontuado com afeto e muita, muita doçura; pelo menos, nesta crônica de sabor pacífico, graças a teu talento, cara Risomar. Parabéns.

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  2. "A marca das estações que tinham vivido se revelava no blush que se alojava entre as marcas do rosto e no batom que não apresentava o contorno nítido de quando tinham se visto no dia da formatura". Coisa bonita e precisa, Risomar. Somente olhos de mulher anotariam com tamanha precisão cirúrgica as voltas do tempo no rosto de outra. Aliás, este Literário está melhor, cada vez melhor pela presença feminina. As autoras têm dado o verdadeiro sal da terra a este espaço.
    Aguardo com imapciência a continuação. Que venha. Abraço.

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  3. Escrever pra mim, não é fácil. É sempre a primeira vez. Mas, ao contrario de varios escritores que dizem ser doloroso, escrever me proporciona tamanho prazer, que não tenho a que comparar...
    E quando um texto meu recebe avaliação de dois grandes escritores como Urariano e Daniel, fico com mais vontade ainda de continuar escrevendo, e de me aprimorar, para continuar merecendo leitores tão sensíveis quanto eles.

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  4. Esse texto (encontro) promete, Risomar. 29 beijos pra você.

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  5. Uma ótima abordagem sobre a amizade e a vida por trás da frivolidade. Estou louca para ler o segundo encontro. Parabéns e beijos, Risomar!

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  6. caramba.. rápido...kd a parte II?

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