terça-feira, 28 de abril de 2009




A carta


* Por Evelyne Furtado

“Minha boníssima madrinha. Almejo ardentemente que estas minhas simples linhas, irão encontrá-la com toda prole em pleno estado de saúde”.

Assim, uma jovem de 20 anos, inicia sua amável carta. Acima, no lado direito da folha encontro as letras J.M.J e com ajuda da minha mãe, descubro tratarem-se das iniciais de Jesus, Maria e José, prática comum nas epistolas naquela época.

A gentil correspondência foi datada em 27 de setembro de 1934 e quem a escreveu relata à sua madrinha, os desencontros, as desilusões e as “ingrisias” do seu noivado, desculpando-se por aborrecer a destinatária com suas “tolices de moça”.

Imaginem que o noivo havia oferecido levar outra moça em seu cavalo para que esta se alistasse a votar nas eleições. Um rapaz que não é nomeado na missiva contara para a linda noiva (era linda mesmo) o sucedido e esta resolvera escrever ao amado “convidando-o” a terminar o noivado.

A carta que me chega às mãos tem um sabor especial. Através dela tenho contato com a maneira de viver naquela primeira metade do século passado, numa pequena cidade do interior do estado.

O voto feminino, por exemplo, era muito recente, mesmo aqui no Rio Grande do Norte, primeiro estado a estender o voto às mulheres, em 1928 e é interessante perceber que as duas senhoritas envolvidas naquele imbróglio amoroso estavam aptas a votar e exerciam seus direitos.

O alvo da disputa amorosa, o noivo, também parecia ser atuante politicamente, uma vez que ele as acompanhava nesse exercício da cidadania.

Chamou-me a atenção, também, que muito antes da Internet e até do telefone, naquela região onde o cavalo ainda era o meio de transportes mais usado, já havia quem fizesse o leva e traz entre os casais, ameaçando a felicidade destes.

Claro que não pude deixar de ficar triste com o aparente jogo duplo do noivo, que flertava com outra moça enquanto mantinha oficialmente o compromisso com a autora da carta. Como mulher, me identifiquei com esta noivinha decepcionada e brava, que chegou a ameaçá-lo com o rompimento sem mais “convite a desmanchar”, simplesmente devolvendo-lhe as cartas e “prompto”; ao que este reagiu dizendo que ela não deveria se impor; melhor seria pedir-lhe para que não voltasse a encontrar a outra moça, o pivô da delicada situação.

A carta tem um tom de suspense, pois a noiva avisava à confidente que já não acreditava mais nesse casamento e terminava gentilmente enviando lembranças a todos. Recomendava, também, para que rasgasse a cartinha após a leitura, pois não queria que esta chegasse às mãos de quem não a merecia lê-la.

Como vêm, o pedido acima não foi atendido, pois aqui estou 75 anos após, dando as minhas impressões sobre a correspondência que graças a Deus não foi rasgada. E o faço com alegria pela oportunidade de testemunhar os sentimentos de uma jovem mulher nos anos 30, escritos do próprio punho em letra bonita e texto limpo.

A alegria é ainda maior, pois conheci bem a autora da cartinha, que continuou bondosa, bonita e inteligente até a maturidade.Por fim, comemoro o bom desfecho do desentendimento entre aquele jovem casal, dos mais felizes que pude conhecer: meus avós paternos.


* Cronista e poetisa em Natal/RN

7 comentários:

  1. Que linda viagem no tempo. A um tempo de pelintras e melindrosas, saraus e convescotes, pândegas e galhofas...
    Uma delícia de relato, pra se guardar em baú de família. Parabéns, minha amiga.

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  2. Eve memorialista, com capacidade de emocionar o leitor nesta época de namoros e perfídias virtuais. Mas a vida a cavalo demora e também dura mais, nos proporciona paisagem e reflexão, além de sensatez. Não fora essa tal sensatez, essa humildade para negociar com a realidade, talvez vc não estivesse aqui, agora. Já pensou? Parabéns!

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  3. Ah...evelyne, que texto lindo! e bem escrito. Você guardou bem a surpresa para o final. Adorei. Tenho toda a correspondência dos meus pais, irmãos e amigos. Separei-as pelos remetentes e guardei tudo. Falta classificar por data.
    Há cartas de 1932 do meu pai em SP, para minha mãe aí, na sua terra. As dela? Ela rasgou todas, só deixou as dele, se derretendo de amor por ela.
    Mas que avó durona! Só por causa de uma voltinha a cavalo? Eu não terminaria nunquinha!...
    Parabéns! Seu texto me emocionou muito.
    Beijo
    Risomar

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  4. Evelyne

    Mil desculpas por escrever seu nome com letra minúscula. Lapso meu!
    Beijo
    Risomar

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  5. Deve ser gostoso ter um passado de família para remexer. Não o tenho, mas gostaria. 29 beijos, Evelyne.

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  6. Marcelo, Daniel, Risomar e Fábio, foi muito bom compartilhar com vocês esse texto tão querido para mim. Beijos e obrigada.

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  7. Excita, num gesto de voyer, ler o que não nos foi endereçado. Tive, há dez anos, a oportunidade de ler uma carta escrita pelo meu avô paterno, pedindo a mão da minha mãe ao meu avô materno, para o seu filho, ou seja, o meu pai. Era uma carta apenas prática e numa escrita acima da média para a época. Foi bom lê-la e ela veio-me de novo nessa cartinha da sua avó, Evelyne. Sim, muito, muito antes da internet causar amores e dores de ciúme. Mergulhar no passado alheio já é bom. No antigamente dos nossos ancestrais é ainda melhor. Boa escolha e boa escrita.

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