Além da imaginação
O
homem, em sua insignificância em relação ao Universo, tem conseguido lampejos
de “grandeza” através da razão. Agiganta-se pelo que o distingue das feras
broncas: a capacidade de pensar, de refletir, de sonhar, de imaginar, de transformar,
de construir coisas novas e extraordinárias, num tempo que, em relação à sua
existência individual, pode ser extenso, mas que é ínfimo em termos cósmicos.
Esta
foi a conclusão (óbvia) a que chegamos, dia desses, em conversa numa roda de
amigos, num dos barzinhos da moda da cidade, onde, amiúde, nos reunimos para,
entre um gole e outro de cerveja e um pratinho e outro de tremoço e de fatias
de salaminho a título de tira-gosto,
“filosofar” e “salvar o mundo” (pelo menos em nossos delírios etílicos).
“Em
meros 13 milênios (um quase nada em relação ao tempo universal), o homem deu um
salto notável das cavernas às viagens espaciais”, acentuou o Marcelo, que em
tudo o que diz dá um jeito de inserir algum dado histórico, seja qual for. E
não é de se estranhar quando se sabe que ele é estudante de História, em uma
das faculdades da cidade.
Da
minha parte, aduzi que, amiúde, futurólogos avançam previsões mirabolantes, que
mais parecem insanos delírios, tamanha é a ousadia do que prevêem. E, ainda
assim, a maior parte dessas projeções do futuro se apequena e se torna
modestíssima face ao que, de fato, é conseguido. “Isto aconteceu, por exemplo,
com Júlio Verne. Quando o escritor francês previu a construção de um submarino
movido a energia nuclear, numa época em que os mais íntimos segredos do átomo
sequer haviam sido desvendados, pessoas ditas de bom-senso torceram o nariz.
Disseram que a previsão não passava de inútil fantasia. Era, pelo menos, o que
objetivamente parecia. Passado menos de um século, todavia, isso se tornou real
quando, em 1954, os Estados Unidos lançaram ao mar o primeiro submarino nuclear
da história que, além de tudo, tinha o nome dado por Júlio Verne à sua
embarcação: Nautilus. Hoje, o insólito submergível do capitão Nemo não somente
é uma realidade, mas ultrapassou, em muito, a mais ousada fantasia do
romancista”, disse, em tom pedante, em defesa da minha tese.
E voltei à carga: “O mesmo vale para as
viagens à Lua, igualmente previstas pelo romancista francês. Como se vê, o
homem continua surpreendendo a ele mesmo, à medida que se conscientiza do seu
potencial (que beira o infinito). Nem sempre, pois, os chamados futurólogos são
maníacos delirantes, a criar disparates, ou desocupados, que desperdiçam tempo
prevendo bobagens. Na maioria das vezes, as maravilhas que prevêem se
concretizam de forma muito mais surpreendente do que ousaram prever”.
Marcão, por seu turno, lembrou que
Arthur Clarck, no fim dos anos 70 do século passado, traçou um panorama a
respeito dos avanços da ciência, em que relacionou as conquistas da tecnologia
somente no período iniciado em 1800. Lembrou as descobertas que revolucionaram
o mundo nos transportes, nas comunicações, na mecânica, na química, na biologia
e na física, entre outras tantas disciplinas.
A partir desse levantamento, fez várias
extrapolações para o futuro. Contudo, apenas esboçou, timidamente, os
benefícios que uma nova disciplina (que então mal começava a ser estruturada)
poderia proporcionar para a humanidade: a Engenharia Genética. Na ocasião, as
previsões de Clarck foram recebidas (como seria de se esperar) com ceticismo,
tanto pela comunidade científica, quanto pelo público. A maioria leiga encarou
os prognósticos como “mera curiosidade”, nada mais.
E o Marcão, não contente com a
informação que deu, acrescentou detalhes. “Entre outras coisas, Clarck afirmou
que a transformação artificial de organismos vivos era factível. Fez, todavia,
uma prudente ressalva. Disse que isso ocorreria ‘apenas em futuro bastante
remoto’. Previu que os genes de animais viriam a ser manipulados, para a
criação de novas espécies. Prudentemente, porém, disse, também, que isso seria possível somente por volta de
2030”.
Resolvi mostrar que havia lido as
declarações de Clarck e lembrei que ele sabia que alguma coisa, nesse sentido,
já estava sendo tentada por alguns biólogos. “Mas não poderia adivinhar que no
mesmo período em que fez suas previsões futurísticas, alguns cientistas já
haviam criado, mediante manipulação genética, uma nova raça de animal. Foi na
Fazenda El Peludo, na província de Buenos Aires, na Argentina. Um veterinário
local conseguiu desenvolver um minipônei, do tamanho de um cão de porte médio,
com longevidade que era o dobro da dos cavalos comuns”, aduzi, pois havia lido
sobre essa experiência na revista “Enciclopédia Ilustrada”.
Não me contive, e voltei à carga,
crente que estava abafando: “Hoje, a despeito de agirem com grande cautela, em
um campo cheio de mistérios e de segredos, os cientistas já têm como reproduzir
seres vivos a partir de qualquer célula de seu organismo (e não apenas das
sexuais). Uma vacina contra a hepatite B, por exemplo, foi elaborada por esse
método. E os avanços não param de acontecer. A clonagem de animais é uma
realidade. E a de seres humanos é potencialmente possível (embora eticamente
não desejável). Pesquisas com células-tronco são bastante promissoras. Vacas
minúsculas, de poucos centímetros de altura e com produtividade média de 3,5
litros de leite por dia, já existem. Outras, de tamanho gigantesco, capazes de
produzir 40% a mais de carne do que as de porte normal, foram desenvolvidas
mediante simples tratamento hormonal”.
O Zito, que até então havia ficado
calado, e que tinha manias de sociólogo, interveio na conversa e disse, o que
todos acharam que foram palavras bastante sensatas: “O que se espera é que
esses avanços da Engenharia Genética possam ser compartilhados por toda a
humanidade, e não apenas por pequenos e poderosos grupos ou por países que
contem com mais recursos, como Estados Unidos, Japão e Alemanha. Que possam servir
de meios para erradicar, por exemplo, doenças hoje consideradas incuráveis e,
principalmente, a fome e a miséria no mundo. Que esse salto tecnológico jamais
se transforme em mais uma forma de dominação do rico sobre o pobre, do forte
sobre o fraco. Porque, se há um campo, no qual o homem pouco evoluiu (e,
provavelmente, até regrediu), este é o da ética”.
Nisso, um mendigo aproximou-se da mesa
onde se desenvolvia nossa conferência de cúpula para salvar o mundo, de olho,
claro, no prato de salaminho. Zito, que acabara de fazer veemente defesa dos
pobres, disse, revoltado: “Sai pra lá, cara!”. E gritou para o garçom: “Tire
esse ligeira daqui! Esse bar está ficando uma merda! Entra quem quer!”.
Aproveitei a deixa para dar uma de
moralista: “A solidariedade está, mesmo, em baixa. Cada vez mais dá lugar à
cobiça e ao preconceito”. E, olhando de viés para o Zito, arrematei: “Algumas
pessoas, ao que parece, se esqueceram que precisam umas das outras e que,
sozinhas, não são ninguém. Não querem se dar conta de que a razão e a fonte da
sua sobrevivência estão no convívio justo, harmonioso, solidário, cooperativo e
constante com seus parceiros de espécie”.
“Belo discurso, Pedrão”, Zito
respondeu, entre irônico e irritado. “Leva ele para casa!”, acrescentou,
referindo-se ao mendigo e com cara de pouco amigo. O incidente propiciou-me uma
reflexão final, antes que nos dispersássemos, dado o adiantado da hora e já
pensando nas desculpas que daríamos às nossas respectivas esposas. “Não há
porque não confiar no homem. Gerações, certamente, vão se suceder, até que se
promova a indispensável revolução de consciências. Injustiças, violências,
contradições e mortes inúteis e desnecessárias deverão ocorrer ainda, em grande
profusão. Mas todo o aprendizado do homo sapiens, em termos de comportamento,
deu-se por processos traumáticos. Dos traumas, erros e acertos, porém, nasceram
as civilizações. Felizmente, há, também, quem pense como Horace Mann, que dizia
‘tenho vergonha de morrer enquanto não tiver conquistado alguma vitória para a
humanidade’”.
Lá no fundinho da consciência, no
entanto, uma voz incômoda e insistente me desafiava: “Por que não dar o exemplo
e não oferecer todo o prato de salaminho ao mendigo, que tanto o deseja?” Para
aliviar o remorso, fiz mais do que isso. Pedi ao garçom que fizesse o maior e
melhor sanduíche da casa para o infeliz que interrompera nossas inúteis
reflexões. E saí do bar com uma certeza (que talvez não fosse mais do que mero
desejo): ainda há esperança... Será?!!!
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma
nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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