Qual o gênero da cidade?
* Por
Urariano Mota
O título que acabei de
riscar era “qual o gênero do nome Recife?”. Em lugar de “nome”, preferi deixar
“cidade”, porque acho mais próprio ao desenvolvimento destas linhas. Tentarei
explicar a mudança.
Quando escrevo “nome
do Recife”, me prendo logo a razões gramaticais, de gêneros do substantivo, que
descem no tempo até os primórdios da etimologia. Menos, como desejo, e até para
melhor segurança dos meus conhecimentos da língua. Mas não aprofundar não é o
mesmo que o desconhecimento absoluto. Ou seja, o nome “recife” é sinônimo de
“arrecife” nos dicionários, conforme se vê no Houaiss, onde a abreviatura ocn
significa oceanografia:
“substantivo
masculino; 1. ocn formação rochosa, à flor da água ou submersa, ger. próxima à
costa, em áreas de pouca profundidade; arrecife, arrife; 2. fig. p.ext.
obstáculo difícil; estorvo”
Ou no Aulete:
“sm. 1. Rochedo ou
conjunto de rochedos perto da costa ou a ela ligados, submersos ou um pouco
acima do nível do mar; ARRECIFE; ESCOLHO. 2. Fig. Estorvo, obstáculo,
contrariedade”.
Se não bato no
obstáculo, devo acrescentar que o batismo da cidade veio desses muros aflorados
por milênios na costa pernambucana: arrecife, ou Recife. O nome é masculino
desde a origem. No entanto, sei por experiência que devemos sair da visão
etimológica, porque ela se esvai nos costumes dos dias presentes. Imaginem o
que seria a comunicação se conversássemos usando palavras no significado
etimológico. Cairíamos numa comédia do diálogo entre um homem do século XVI com
outro do século XXI.
Afinal, estamos
falando da cidade, do que ela tem sido, é. Não falamos mais, há séculos, do
muro na entrada do cais do porto. Para esclarecer o gênero, penso que devemos
partir do histórico mais perto deste 2014. Melhor, devemos vir do histórico que
se fez civilização, dos poetas e escritores que falaram e falam da cidade no
gênero que ficou, por força da arte e do pensamento. Pois não é próprio e
legítimo estabelecer pontes entre o gênero prático e o gênio poético?
Assim, desde o título
do seu grande poema, Manuel Bandeira canta no masculino o substantivo, o artigo
definido e os adjetivos na Evocação do Recife:
“Recife
Não
a Veneza americana
Não
a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não
o Recife dos Mascates
Nem
mesmo o Recife que aprendi a amar depois...
Recife
morto, Recife bom, Recife brasileiro
como
a casa de meu avô”.
Assim Carlos Pena
Filho nos conduz na fluência do Guia Prático da cidade do Recife. Em todos os
versos a cidade é masculina. Assim também o masculino da cidade em João Cabral
de Melo Neto, onde o Recife aparece evidente com seu nome ou implícito, como
ele já afirmou em entrevista:
"Meu primeiro
poema foi publicado em 1942 no Recife, mas não tinha nada a ver com a cidade.
Era de influência surrealista. Tenho 180 poemas escritos sobre Pernambuco - a
maioria deles sobre o Recife e seu Rio Capibaribe. E escreveria outros tantos
se pudesse. A veia inspiradora do Recife não morre, porque a cidade continua a
existir. Persiste a atmosfera de miséria que inspirou, por exemplo, O Cão Sem
Plumas, de 1950, ou Morte e Vida Severina, de 1954. Sempre escrevi poemas sobre
o Recife longe da cidade”. Ou aqui nos versos:
“Em
meio à bacia negra
desta
maré quando em cio,
eis
a Albufera, Valência,
onde
o Recife me surgiu...
Todas lembravam o Recife,
este
em todas se situa,
em
todas em que é um crime
para
o povo estar na rua”.
Mais, poderíamos citar
todos os grandes poetas de Pernambuco, que sempre se referem à cidade no
masculino. Além de João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos Pena Filho, as
citações iriam de Ascenso Ferreira e Joaquim Cardozo a Mauro Mota e Alberto da
Cunha Melo. Com direito de passagem, é claro, pela tradição pernambucana, que
atende pelo nome de Gilberto Freyre: "O recifense diz ‘Chegar ao Recife’,
‘Vir para o Recife’, ‘Sair do Recife’, ‘Voar sobre o Recife’". E Gilberto
Freyre, com a graça de sempre, afirmava que somente a gente de fora se referia
à cidade sem o artigo masculino.
Se saímos da tradição
literária da cidade, temos a graça de ouvir na música popular o compositor e
cronista Antonio Maria. Ele canta e nos encanta até hoje com “sou do Recife com
orgulho e com saudade”, e mais “que adianta se o Recife está longe, e a saudade
é tão grande que eu até me embaraço”. Como esquecê-lo ou negá-lo?
Falar, dizer dE
Recife, Em Recife, ou Recife sem o artigo masculino antes, é o mesmo que
renegar as mais belas vozes da cidade, e assim desprezar o excelente, que é o
modo mais vil de ignorância. No entanto, a mídia do Sul e Sudeste algumas vezes
claudica no gênero da cidade. E mais sério, acha que escrever Em Recife ou nO
Recife é uma questão menor. Os seus consultores de língua portuguesa, se
interrogados sobre o uso correto, respondem que tanto faz, quando de modo mais
claro responderiam: para a importância periférica do lugar, tanto faz escrever
dE Recife ou dO Recife. O que vale dizer: seria o mesmo que exigir correção
diante de um nome tupi conforme as regras da fala dos índios.
Já houve até
gramáticos, como Napoleão Mendes de Almeida, que tiveram a pretensão de nos
ensinar a falar o nome da nossa cidade. Ensinar tupi aos tupis? Pois assim nos
ensina o senhor Napoleão:
“Se a cidade de
Pernambuco nasceu num recife, o recife é precisamente essa parte inicial, e o
Recife é o nome desse bairro de Recife, conforme se vê em planta da cidade. Não
estranhe o leitor que em Recife alguém lhe diga: 'Preciso ir ao Recife pagar
uma conta'. Porque está ele, o falante, a se referir à parte antiga da cidade,
ao bairro do Recife, onde se encontram as docas, importantes repartições de
serviços públicos e grandes escritórios...
Ao chamar hoje Recife
de "o Recife", não há tradição. A tradição é a que por nós foi
testemunhada quando aí estivemos. Veja-se para confirmação, a fotografia que se
encontra na página 51 do Guia prático, histórico e sentimental de Recife, de
Gilberto Freyre, embaixo da qual está escrito: '... ao pé de uma ponte que liga
o bairro de Santo Antônio ao do Recife'
E quando em Recife diz
alguém: 'dentro do Recife', ele está a especificar mais pormenorizadamente
ainda o Recife (bairro), pois com essa expressão ele passa a se referir à zona
do meretrício de Recife."
Registro na citação
acima duas impropriedades. Na primeira, o sabido Napoleão alterou o nome do
livro de Gilberto Freyre, que é Guia prático, histórico e sentimental dO
Recife. Na segunda, o zeloso gramático omitiu o texto de início da legenda da
foto da página 51 do Guia: “Reprodução de foto raríssima do fim do século XIX,
vendo-se um recifense a defecar napolitanamente à beira do Cabibaribe, ao pé da
ponte...”. Mas não nos percamos.
Tanto na mídia do
Sudeste quanto na aula de tupi para tupis de Napoleão residem um
desconhecimento soberbo, à beira da soberba, do que entendem como a tradição
dos periféricos. Mas acredito que o tempo, a razão e o sentimento voam para o
nosso lado. De modo mais soberano, mas sem insulto, pois não estamos “para
fazer barulho”, como canta o frevo Madeira que cupim não rói, de Capiba:
“Não
vem pra fazer barulho
Vem
só dizer
E
com satisfação
Queiram
ou não queiram os juízes
O
nosso Bloco é de fato campeão
E
se aqui estamos
Cantando
essa canção
Viemos
defender
A
nossa tradição...”.
Aqui junto a nós, ao
fim, o sentimento também canta, porque nos fala e diz: o Recife é fêmea, como
fêmeas são todas as cidades. Mas o Recife masculino vem do seu útero. Toda a
cidade do Recife é um abrigo, residência, identidade, modo de ser e origem, do
útero fecundado. Por isso dizemos nO Recife, dO Recife, para O Recife, O Recife. O que significa: o amor mais fundo
pelo útero desta cidade.
(Do livro "Dicionário amoroso do Recife")
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
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