Cinema Brasil
* Por
Eduardo Ramos
Começam a se desenhar
no horizonte brasileiro os primeiros sinais da tormenta...
O ronco precursor
partiu de S. Paulo.
Mal puderam nossos
olhos acompanhar a trajetória da rápida fita luminosa do raio, desferido pela primeira
descarga.
Por enquanto essa
ameaça fulmínea se apagou na escuridão da sua própria nuvem. Não se apagou
tanto, porém, que não percebêssemos nitidamente, à luz do seu relâmpago, a
restauração da monarquia, como uma visão que se aproxima para descer inopinadamente
ao campo das nossas misérias...
Dos membros do governo
provisório só três sobrevivem: o Sr. Rui Barbosa, o Sr. Demétrio Ribeiro e o
Sr. Francisco Glicério
O sr. Rui é um vulcão
solitário... A coluna de fogo que se lança de sua cratera ilumina os céus com
singular fulguração, entretida pelo subterrâneo e profundo calor do gênio da
nossa raça. A admiração dos compatriotas paga-lhe a excelência confinando-o na
honorífica imobilidade do seu papel de fenômeno... Alguns que se julgam
diminuídos por essa magnificação platônica, e que medraram à sua sombra, e pela
sua influência, atiram-lhe de quando em quando o metal já frio de suas escórias
para conspurcá-lo. Desse expediente fez-se uma espécie de regalo para desagravo
dos adventícios, que procuram reduzi-lo a uma simples figura de espavento, da
qual eles se desfazem despejadamente, mal termina a comédia das pugnas
partidárias em que o envolvem. O Sr. Rui que espere as futuras crises, em que a
velhacaria dos seus supostos idólatras o glorifique de novo com o maior dos
brasileiros, para o enjeitar, passadas elas, como o mais incapaz dos
governantes!...
Em um país onde tais
coisas acontecem, nada mais natural que homens políticos da vultosa estatura
que conhecemos, sejam quinhoados do poder, do qual o Sr. Rui é sistematicamente
excluído!...
O segundo ministro,
ainda vivo, do governo revolucionário de 1889, é o sr. Demétrio Ribeiro.
Este apagou-se. Como o
pastor, depois de uma sortida contra os lobos, ele voltou descuidoso e
tranqüilo ao seu rebanho. Fechou-se no esquecimento de sua obra, e talvez de
si.
O terceiro é o Sr.
Francisco Glicério. Este ilustre estadista goza o estranho privilégio de ser o
único dentre os fundadores oficiais do regímen republicano que considera
paradisíaca a situação atual, a que nos conduziu o sistema de governo modelado
pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891.
O estado de espírito
do interessante senador define-se admiravelmente nos conceitos que externou por
ocasião da sua conversa com a Reportagem de A Noite, segundo foi publicada, com
a autenticação do seu fiel retrato, estampado no corpo da primeira coluna da
primeira página, da edição desse vespertino, em 19 do corrente mês.
A palavra com que o
egrégio entrevistado rompe a resposta ao primeiro tópico da inquirição do jornalista,
é o monossílabo contundente - "Não!".
Este "Não!"
é venerável. Tem setenta anos de idade, e vinte e seis anos de experiência do
poder...
O Sr. Glicério não
quer a reforma constitucional!
Alegaram-lhe que a
República está sem crédito, está falida; correndo para a humilhação da
insolvência em dias que voam; e que o solo nacional responde ao credor
estrangeiro no termo das dívidas descumpridas.
- A isso o engenhoso
financeiro de Campinas obtempera que "a culpa é dos homens; porque a
constituição não os autorizou a se desmandarem"...
De tão sábias palavras
deduz-se que a democracia republicana no Brasil é um regímen que comporta
comodamente homens sem escrúpulos, governos sem corretivo, que dissipam, gozam,
mentem, fraudam, estorquem, raspam a nação, e se retiram fartos, sadios,
felizes...
Os monarquistas vêem
isto, ouvem isso e naturalmente o registram.
Pergunta-se ao Sr.
Glicério se não tem notícia das concussões do Amazonas, das rapinas do Pará,
das misérias do Maranhão, das barbaridades do Ceará, da anarquia de Alagoas, do
descalabro da Bahia, das ignomínias da política regional, da beligerância de
Estados para a conservação, ou conquista, de territórios vizinhos, afrontando a
autoridade da mais alta corte judiciária, e esta, por outro lado, levada aos
boleios, na inconsistência de uma jurisdição mal definida, sob a pressão do
interesse partidário, suspeitada, fraca, hesitante, desrespeitada...:
pergunta-se ao ilustre general honorário se nunca entrou no conhecimento desses
fatos...
E o provecto parlamentar,
sorrindo, com o seu largo sorriso de fauno, responde que sim, porque em raros
deles deixou de interferir: - mas que o defeito é dos costumes, e não da
constituição, que os não faz...
Portanto, a República
onde a degenerescência dos costumes invade o organismo político para corromper,
sem que as instituições a protejam da infecção, não passa de uma expressão
nominal de nacionalidade, sem as condições morais de sua independência entre as
unidades políticas do mundo culto.
***
Estas considerações já
se não limitam a afagar o espírito tendencioso dos adeptos da monarquia;
desiludem os mais ardentes republicanos, e vão infiltrando na alma dos
brasileiros o desgosto, a incredulidade na honra dos que os governam, até o dia
trágico da reação.
Inquire-se do Sr.
Glicério se ele não está testemunhando a desagregação dos elementos políticos
deste país, no fracionamento da sua justiça, pela cerebrina invenção, pela
inverossímil concepção indígena que desmembrou a autoridade legislativa, e
confiou a execução das leis federais à processualística de vinte legislaturas,
como outras tantas nações estrangeiras...
E S. Exa. adverte que
é a isso que cientificamente se denomina autonomia!...
Mas quando se vem a
saber que um disparate desse tomo é articulado por um dos mais celebrados
fundadores do regímen republicano do Brasil, obstinadamente surdo aos conselhos
da experiência, acaba-se por acreditar da depravação do senso nas mais altas
camadas da política, na insanidade do patriotismo, ou na ausência da
integridade intelectual necessária para as manter na altura da sua vocação,
como guias de seus compatriotas.
Estamos assistindo a
um espetáculo estranho: a importação reduzidíssima, em presença da exportação
crescente. É certamente a situação ideal do nosso intercâmbio. Mas é também
evidente que essa ocorrência inesperada, na intensidade com que nos
surpreendeu, oprime a União onerada, em desafogo dos Estados favorecidos. Não
há, porém, remédio a esse desequilíbrio. O poder tributário está
inabalavelmente plantado em nossa lei fundamental; à União o pouco que entra;
aos Estados o muito que sai. Padeça, pois, a União: dissolva o seu exército,
venda os seus navios de guerra, não pague os juros de sua dívida interna e aos empreiteiros
de suas obras. O Sr. General Glicério continuará a desfrutar copiosamente a sua
verde e jovial madureza, no contato gasalhoso do velho amigo Rodrigues Alves, e
do seu jovem e esperançoso correligionário Altino Arantes.
Quando roncar o
trovão, feche os ouvidos com obturadores de algodão, canforado. Isto lhe dará a
bem-aventurança de uma surdez acalmada.
O seu depoimento, e
dos próceres do seu partido, hão de ter a sua justa conta de influência na
elaboração dos acontecimentos que nos aguardam.
Estou com o ilustre
campineiro: a Constituição que temos é um broquel miraculoso contra a peste, a
fome, a miséria e a vergonha.
Conservemo-la, meu
ilustre amigo, conservemo-la, e vamos ali tomar um cafezinho...
(Prosas de Cassandra,
1918.)
*
Escritor e jurista, membro da Academia Brasileira de Letras
Nenhum comentário:
Postar um comentário