O coronel foi votar
* Por
Marco Albertim
Às dez em ponto o
coronel chegou para votar. Escolhera a hora conforme seu juízo utilitário. Se
viesse antes, a fila de votantes ainda estaria se formando; correria o risco de
se juntar a um grupo ainda minguado de eleitores. Se viesse depois, correria o
mesmo risco, porque estaria próximo da hora do almoço. À tarde...
Ora, reservara a tarde
para calcular como ostentara o brio da escolha de seu voto. Ainda abrira a
porta do guarda-roupa para apreciar a farda verde-oliva, tão ereta no cabide
quanto seus ombros nunca arqueados.
Ao lado, para recompor
a memória solene do coronel, o espadim luzente. Sempre que ia ao quartel, antes
de se sentar à frente do birô, pendurava o espadim na parede ao lado, junto a
flâmulas e bandeirolas verdes e azuis. Despachando documentos, assinando-os,
tinha um olho nos papéis e outro nos raios luzentes do espadim.
Mas não tirara o pijama
desde que se pusera em pé, lera o jornal com ele e pusera o robe para sentar-se
à mesa do café.
- Vai vestir a farda
para votar? – quis saber sua mulher.
- Vou.
- Vou mandar a
empregada tirá-lo do guarda-roupa e passar no ferro elétrico.
- Sim, faça isso.
A farda não tinha
sequer um traço de amassadura. A empregada logo terminou e pôs o uniforme na
poltrona num canto do quarto, em frente à ponta inferior da cama do casal.
O coronel vestiu-a, pôs
o quepe na cabeça e o espadim atado no lado direito da cintura. Desceu os
degraus do terraço e antes de abrir o portão da frente da casa, tirou o quepe
da cabeça, pondo-o entre o antebraço direito e o corpo. Àquela hora, o calor se
concentrara, a quentura incidindo no jardim verdoso da casa e na farda da mesma
cor do coronel. Ele sentiu o suor minar de sua testa. Quando dobrou a esquina
da vila militar, sentiu que na camisa, abaixo das axilas, deixava ver duas
largas poças de suor. Repôs o quepe na cabeça, não para ostentar a
marcialidade, mas para se proteger do sol. O incômodo acentuou o perfil
belicoso de seu rosto. Podia ir de carro. Mas decidira fazer o curto percurso
até o educandário a pé. Com garbo e ao mesmo tempo dando conta da ideologia de
seu voto, inda que não mencionasse nomes ou siglas.
Andou os quatro
quarteirões ao lado da vila militar. Pisou em papéis, santinhos de candidatos
diversos. Os veículos, apesar da pouca velocidade, não evitavam o sopro de
poeira nos cantos de todo o meio-fio. O coronel empoeirou-se. O pó juntou-se às
poças de suor, agora espalhadas de cima a baixo da camisa e ainda nas costas.
Enquanto estivera na
ativa, o coronel nunca vestira farda para ir à cabine de votação. Ninguém o
ignorava portador de divisas no peito da impecável camisa cremosa da farda.
Agora, com cinquenta anos e apenas um de aposentadoria, não se acomodara ao
pijama, a não ser em casa, venturoso patrono do lar, no gozo da intimidade
decorrente da justa reforma.
Às dez em ponto o
coronel estacou na fila. Incomodou-se por ser o último, não fazer uso da
patente e ser o primeiro a assinar a lista de votantes. Na fila longa,
distinguiu à sua frente, não sem estorvo, eleitores mais moços, quase imberbes,
todos de bermuda. Não demorou e atrás dele juntaram-se outros da mesma idade.
Ninguém se deu conta do perfil marcial do militar, sequer desconfiaram do
propósito de declarar o voto sem confessar o nome do candidato escolhido.
Deixou a identidade de
militar com a mesária, antes de entrar na cabine. Ao voltar para reaver o
documento, viu que estava misturado com os de outros; não de militares, mas de
civis comuns. Quando cruzou o limiar da sala, a cintura, do lado onde pendurara
o espadim, chocou-se com a quina da porta. O espadim desprendeu-se, caiu. Todos
olharam para o coronel.
*Jornalista e escritor. Trabalhou
no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos
para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional
de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho
Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas
“Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de
contos e um romance.
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