Literatura e vida
* Por Pedro J. Bondaczuk
A literatura tem alguma
importância prática em nossa vida, ou não passa de mero passatempo (posto que
muito agradável, pelo menos para mim, quer na condição de leitor, quer na de
escritor), uma espécie de refinado lazer? Sou suspeito (suspeitíssimo) para
opinar, posto que vivo dela. É o meio pelo qual obtenho meu sustento.
Entendo, todavia, que a
literatura é muito importante para a “fermentação” de idéias, para o estudo do
comportamento das pessoas e para nos indicar, sobretudo, o que não devemos
fazer, caso tenhamos intenção de obter sucesso em nossas atividades e na
convivência do dia a dia.
Contudo, ela tem lá sua
importância, mesmo que relativa. Nem é inútil, como acusam os que não sabem ou
não gostam de ler, e nem essencial à vida, como pretendem os que a produzem. É
uma espécie de vinho. A bebida, se tomada com moderação, nos dá inegável
prazer. Mas se ingerida em excesso... embriaga e não alimenta. Ademais, tem que
ser de boa qualidade, para não nos dar ressaca.
Se a literatura é importante na
vida das pessoas (e estou absolutamente convicto que é), qual é seu verdadeiro
papel no estudo dos seres vivos (principalmente dos humanos)? Para quê serve de
fato? Para divertir, ou para instruir, orientar, analisar e concluir? Alguém
pode, a esta altura, perguntar: “mas não temos a ciência para isso?”. Temos.
Mas somente ela não basta.
A vida não se restringe, apenas,
a leis naturais e imutáveis e nenhum ser vivo reage de forma absolutamente
igual. Ela é sutil e não comporta análises mecânicas e genéricas. Para sua
compreensão, são necessários exemplos, das várias formas de comportamento das
pessoas. Ainda assim, somos incapazes de compreender em profundidade esse
maravilhoso mistério, esse privilégio, essa magnífica aventura que é viver.
Há pessoas (sobretudo escritores,
que é o que me interessa nestas descompromissadas reflexões) com imensa
cultura, ecléticas – que sabem um pouco de tudo, de ciência, filosofia,
literatura, música etc. – mas que ocupam posição na sociedade que não condiz
com a vastidão dos seus conhecimentos. Por que? Falta-lhes um ingrediente
essencial para o sucesso: a iniciativa.
Não conseguem superar o seu medo
de exposição. Não usam o que sabem em sentido prático, para erigir alguma obra
durável (material ou intelectual). Limitam-se a ostentar a vasta cultura que
têm em conversas informais, humilhando, embora sem essa intenção, os que não
contam com esse acervo de conhecimentos.
Aquilo que aprendermos somente
terá valor se for usado (e bem-utilizado) em sentido prático. Afinal, cultura
não é nenhum adorno para ser exibida por aí. O escritor português, Inácio
Dantas, observa a respeito: “Ter grande conhecimento e não o usar é como ter
uma grande biblioteca e não abrir um único livro”. Ou, pior, é ter esse enorme
acervo e ser analfabeto (mesmo que não literal, mas espiritual).
Quem faz literatura, convive, o
tempo todo, com um assustador fantasma, que o persegue e atormenta sem cessar: o
medo. Afinal, para escrever bem, algo que se aproveite e, sobretudo, permaneça
e não seja descartável, é indispensável que o escritor se exponha. Não me
refiro à exposição de cultura, informações, estilo, nada disso. É indispensável
que esteja, por completo, no texto que produz, e sem que o leitor sequer se dê
conta.
Os episódios mais dolorosos e
dramáticos da sua vida, os que lhe causaram, algum dia, danos tidos como
irreparáveis, o mais intenso e violento sofrimento, têm que vir à tona,
necessariamente, emergir, com toda a sua crueza e violência, e se espraiar no
texto. Mas com talento e emoção. Nada, absolutamente nada pode ou deve ser
escondido. Sem isso, a produção literária parecerá (mesmo que não seja),
artificial, mentirosa, vazia de conteúdo. Faltar-lhe-á verossimilhança.
Não conheço nenhum escritor de sucesso
que não sinta este medo da exposição pessoal. Assisti vários filmes a respeito
e conversei com diversas pessoas sobre isso. O cinema tem explorado com
maestria esse aspecto da produção literária. Vi, não faz muito, no Telecine,
canal de televisão a cabo, excelente produção desse tipo (cujo nome, não me
recordo). Era a história de um escritor, autor de alguns best-sellers que,
subitamente, parou de escrever. Os que acreditam nela diriam que “perdeu a
inspiração”.
Assumiu uma atitude cínica
perante os amigos e conhecidos e se tornava até agressivo sempre que instado a
voltar a escrever. Dizia que tudo o que tinha a dizer ao mundo, já havia dito
nos livros anteriores. Garantia que estava vazio e se sentia bem assim.
Mentira, claro!
Um dia, foi confrontado com um
jovem e ambicioso editor, que passou a provocá-lo de todas as maneiras, para
ver se o despertava. O rapaz, inexperiente, porém perspicaz, criticou-o,
desafiou-o, ridicularizou-o e nada. Ambos chegaram, mesmo, às vias de fato. Até
que num dado momento, o veterano escritor, num lampejo de lucidez e coragem,
admitiu que havia perdido a garra de escrever por medo.
Desde que ficara viúvo, não havia
escrito uma única linha. Como tinha estabilidade financeira, não precisava se
expor para obter o sustento. Ocorre que a esposa morta era o amor da sua vida.
Não conseguira absorver essa perda e tentava, a todo custo, em vão, esquecer
aquela mulher. Forçado pelo jovem editor a lembrar-se dela, rompeu-se, afinal,
a sólida barreira que havia construído ao longo dos anos. As emoções, dolorosas
e sufocantes, vieram à tona, com irresistível intensidade, levando tudo de
roldão e causando-lhe sofrimentos dobrados. Mas era a catarse salvadora de que
precisava.
Foi quando o veterano escritor,
rilhando os dentes, tomou uma atitude extrema: aceitou o desafio de ficar
cara-a-cara com seus fantasmas. Superou (mas não eliminou) seu medo e... voltou
a escrever. E produziu livros e mais livros, em quantidade e com qualidade,
como nunca antes havia produzido. E estes venderam aos milhões, porque eram originais,
intensos, verdadeiros, emocionantes e, sobretudo, apaixonados (no sentido lato
de paixão).
Eu também, diariamente, sou
desafiado a encarar (e vencer) meu medo. Ao sentar-me, diante do computador,
para escrever, sinto-me como o patriarca bíblico Jacó, que lutou uma noite
inteira com um anjo, para que este o abençoasse.
Luto, igualmente, a todo o
instante, com um desses seres superiores, para que me abençoe e eu encontre,
sempre, qualquer que seja o texto que esteja produzindo, as palavras adequadas,
as metáforas exatas, a indispensável correção gramatical e a linguagem mais
singela, direta e empática para atingir o coração dos meus anônimos leitores.
Mas com intensidade, emoção e verdade. Todavia o medo de fracassar nunca
desaparece. Está ali, assustador, sempre presente, a espreitar-me,
atormentando-me sem cessar. É a sina do escritor...
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do
Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em
equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por
uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de
“Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Escritas banais podem ter uma maior repercussão do que outras, mais estudadas e mais elaboradas. Os humores dos leitores, assim como dos jogadores de futebol ou dos eleitores são enigmas ambulantes. O sucesso pode estar à espreita.
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