Duas ou três coisinhas que sei sobre a Mooca
* Por André Falavigna
A última vez que vi a Mooca
receber destaque na imprensa paulista foi em 1997. O “Jornal da Tarde”
estampava em sua primeira página a seguinte manchete:
“Mooca: como o tráfico domina um bairro”.
Convenhamos que não é lá uma
coisa muito bonita para se ouvir dizer de um bairro. Bem sei que muita gente
acha o tráfico de drogas uma atividade de resistência da qual os oprimidos e desvalidos
fazem uso legítimo e gostoso no combate ao neoliberalismo. Mas isso só funciona
se a gente não tiver que conviver de perto com a luta de libertação promovida
por essa rapaziada que não se deixou alienar e que, além de tudo, tira muita
gente de um apuro danado. Porque, quando o contato é estabelecido, a coisa
torna-se repentinamente menos glamourosa. Daí que, ao contrário do que se possa
imaginar, o JT não estava fornecendo uma série de informações úteis a
potenciais outros agentes de transformação social. Estava era dando uma
informação lamentável que causaria tristeza a muita gente: aos moradores do
bairro, sobretudo os que possuíssem imóveis lá; aos policiais responsáveis pela
área, seja lá em que sentido isso possa ser tomado; aos traficantes e seus
clientes, que veriam atraída sobre si indesejada atenção; aos vereadores mais
clássicos do bairro, sobre os quais poderia recair parte da responsabilidade
pela situação vexatória.
Como o JT não tinha nada a ver
com isso, publicou uma série de textos que davam conta da ousadia dos
criminosos (essa imprensa tucana ainda não compreendeu os verdadeiros objetivos
da luta narco-libertadora e insiste em chamar insurgentes de criminosos), da
facilidade com que se obtinham drogas na região e do descaso das autoridades
(uma injustiça danada, visto que essa gente nunca, mas nunca mesmo, descura de
seus negócios).
O pior é que era verdade. Eu
tinha um amigo que, uma vez perto de uma fábrica de café que há na Mooca,
sentindo o cheiro do ouro negro dizia sempre: “Ahhh, tâmo perto da booooca”, não
sem uma satisfação pantagruélica. Uma relação estranha entre pós imiscíveis,
mas sinestesicamente arranjados. Um outro deixou de pagar as prestações do
carro para continuar num ritmo ciclônico de aspirações as mais elevadas. Quando
a coisa apertou, simulou o roubo do carro, pegou o dinheiro do seguro e
transformou-o em uma coisa completamente diferente. Havia ainda muitíssimos
outros tipos dignos de nota, mas não vale a pena se estender com o que já é
arquiconhecido. Eram tantas as opções que todo mundo tinha seu próprio
traficante de estimação. Só podia acabar na primeira página mesmo.
Não sei como anda a coisa por lá.
Antes, quando se falava em Mooca as pessoas pensavam em italianos, padarias,
roupas berrantes, festas típicas, casas na Praia Grande e em muita micose. Essa
Mooca era melhor. Há algumas coisas que merecem ser ditas sobre ela. Não é nada
bom que a posteridade associe o bairro unicamente à idéia de um playground
nasal. A Mooca é mais do que isso. Vejam só:
Na Mooca, todo mundo tem um carro
vermelho. No começo, a regra era o Fusca. Depois, passamos ao Scort, que ainda
pode ser visto livre em algumas regiões. Agora estamos numa época de mais
variedade, mas o tom é sempre arredondado: Corsa, Pálio, Fiesta ou qualquer
outra coisa que se pareça com um Kinder Ovo. A surpresa é sempre um eleitor do
Maluf. Porque, na Mooca, todo mundo vota no Maluf.
Quando no bairro predominavam as
casas, antes da verticalização, os vendedores de “porta-em-porta” faziam
fortuna na Mooca, sem exceção. Você poderia vender rádios, televisões, panelas
de pressão, panelas que apitam quando a água esquenta, coleções da Barsa ou um
jogo de fitas VHS com todos os programas “Crítica e Autocrítica”: se quisesse
ficar rico, bastava tocar a campainha, esperar a dona-de-casa sair para a rua e,
no meio do papo, inserir a informação de que a vizinha tinha acabado de comprar
um produto idêntico ao que ora lhe era cordialmente oferecido. Pronto: na
Mooca, ninguém admite que o vizinho tenha uma coisa que a gente ainda não tem,
mesmo que essa coisa não sirva para porra nenhuma.
E não se ofendam com isso de todo
mundo votar no Maluf. Sabe a “Ponte do Rio Pequeno”? Pois é, na Mooca todo
mundo vota nele porque, dentre outras coisas, ele fez a “Ponte do Mar Pequeno”
(é como eles falam lá) e, assim, ficou muito mais fácil pegar uma doença de pele
na Praia Grande. A Praia Grande é, sem sombra de dúvida, o litoral da Mooca.
Toda vez que eu via meus primos moquenses com eripisela suína, eu dizia: obra
de Paulo Maluf! O homem sempre ganha a eleição na Mooca. Ganha na Praia Grande
também porque moquense que se preze vai sempre à praia em dia de eleição, então
eles já trocam o título para lá e pronto. Daí, no dia da eleição, entram num
carro vermelho e tocam para Long Beach.
Durante muitos anos, a noite
perfeita de um jovem moquense poderia ser a seguinte: após passar o sábado
lavando o carro (e comendo churro, como diria o Premeditando), o sujeito se
empistunava todo. Camisa estampada, perfume doce, relógio que troca de
pulseira, muito gel e tanque cheio. Tudo pronto, ele ia a uma padaria, só para
esquentar um pouco. Tomava uns rabos de galo com a moçada. Esperava duas moças (na
realidade, minas, pois foi na Mooca que o termo ganhou força, para somente
depois ser popularizado na periferia) passarem juntas, punha a cabeça para fora
da padoca e berrava: “Ahê, pincesa”! (na Mooca, ninguém consegue falar
“princesa”, não me perguntem o porquê). Quando as moças olhavam para trás (as
duas sempre olham juntas), ele então dizia: “É a do meio”!
A padoca toda ria e ele já
começava bem a noite. Depois, era só ir a uma Discoteca, estacionar em fila
dupla, abrir todas as portas do carro vermelho e ligar o som bem alto. Se
possível, mais alto do que o da Discoteca. O sujeito não entrava nunca na casa,
porque já gastara a maior parte da mesada em Poliflor, churros e Vodol. Nessas
condições, era difícil comer alguém, mas isso nunca foi problema. Na Mooca,
você come as suas primas e pronto. Depois se casa com uma prima grávida e é
isso aí. Por isso nasce tanto bebê com rabo de porco ou com uma orelha a menos
na maternidade do São Cristóvão.
No início da madrugada, a
verdadeira diversão começava. Na falta de minas normais, juntava-se uma cambada
de marmanjos e primas de marmanjos e ia-se até Congonhas, ver avião subir
enquanto se fumava maconha. Depois, enchia-se mais ainda a cara e voltava-se
para casa, onde a mãe sempre estava acordada, preocupada com a prole. Finda uma
rápida discussão, o camarada dava uns tapas na coitada e ia dormir no meio de
uma punheta falhada. No dia seguinte, a mãe ligava para uma prima dela,
provavelmente mãe da prima que o filho comia, e reclamava que “essa mulherada
está acabando com a vida do meu menino”.
Na Mooca não existe plural. Quem
flexiona qualquer coisa quanto ao número é taxado de petista viado. E eu não
sei o que é pior. E todo mundo lá respira pela boca. Podem reparar.
Tudo na Mooca chega com algumas
décadas de atraso. A moda da molecada lá agora deve ser bicicross, e se a
Pakalolo quiser ressuscitar é só começar com uma lojinha na Paes de Barros. Se
a gente permitisse que a Mooca se emancipasse, ela seria governada por Paulo
Maluf, Erasmo Dias cuidaria da Segurança, Hebe Camargo da Cultura e Gugu
Liberato da Educação. Delfin Neto mandaria na Economia. Até aí, sem problema:
mais um pouco e ele cuida da do Brasil de novo. E um país que tem um Ministério
da Cultura não merece coisa melhor do que a Hebe Camargo, nem que seja o
Gilberto Gil. Pelo menos a gente entende o que ela fala. Merda por merda, eu
prefiro as inteligíveis.
Faz tempo que não vou à Mooca.
Poucos bairros de São Paulo mudaram tanto e em tanta sincronia com as mudanças
da cidade. É o que eu sempre digo: o que hoje é a Mooca, amanhã será o Brasil.
Deveriam, inclusive, meter logo uma placa bem na entrada da Radial Leste:
Mooca: Amem-na ou deixem-na.
(*) André Falavigna é escritor, tendo publicado
dezenas de contos e crônicas (sobretudo futebolísticas) na Web. Possui um blog
pessoal no qual lança, periodicamente, capítulos de um romance. Colabora com
diversas publicações eletrônicas.
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