Atormentações
astrológicas
* Por Anna Lee
Foi numa combinação entre Kafka e
Getúlio Vargas que pensei quando soube que o número de planetas que compõem o
sistema solar pode se elevar de 9 para 12, numa votação que ocorrerá no
encontro da IAU (União Astronômica Internacional), em Praga.
Em Kafka, pensei quando soube que
astrônomos estavam reunidos em Praga. Não porque eu tenha notícia de que ele
foi um interessado em astrologia. Mas porque não há como pensar em Praga sem
pensar em Kafka. E em Dora Diamant, Felice Bauer e Milena Pllack, seus amores
infelizes. E em suas cartas. E em seu pai. E também na certa manhã em que
Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos e “encontrou-se metamorfoseado num
inseto monstruoso”.
“Estava deitado de costas sobre a
própria couraça, e ao erguer a cabeça enxergou seu ventre marrom,
acentuadamente abaulado, com profundas saliências arqueadas, sobre a qual o
cobertor, quase escorregando, estava prestes a cair. Suas muitas pernas,
terrivelmente finas em comparação à largura do corpo, agitavam-se desamparadas
diante de seus olhos”.
Desde que tomei conhecimento
disso, vivo atormentada, dia após dia, pela idéia de que o mesmo possa me
acontecer, numa certa manhã, quando eu menos esperar.
Em Getúlio, pensei quando soube
que será na tarde da quinta-feira, 24, que os membros da IAU votarão em
plenário a proposta que poderá elevar o asteróide Ceres, entre Marte e Júpiter;
o Caronte, atual satélite de Plutão; e o misterioso Xena (apenas um apelido
provisório), nas fronteiras geladas do sistema solar; à categoria de planeta.
Foi em 24 de agosto de 1954 que Getúlio se suicidou. Escreveu a frase “saio da
vida para entrar na história”, no rodapé da carta-testamento, e, então, deu um
tiro no coração. Estava só e solitário.
Fecho os olhos – porque ouço
melhor quando fecho os olhos – e posso ouvir o barulho da bala que explodiu em
sangue. Mas o que me atormenta é a imagem do pijama que Getúlio usava na noite
do suicídio, que um dia eu vi estendido e exposto na mesma cama e no mesmo quarto
do Palácio do Catete.
Sim, também pensei na improbabilidade da relação entre
Kafka e Getúlio, que teve lá suas pretensões literárias. Pelo menos entrou para
a Academia Brasileira de Letras em 1941, num igual agosto.
Improbabilidade por
improbabilidade, a da relação Kafka e Getúlio e das benesses que a reforma
planetária poderá trazer, fiquei desejando que todas as mazelas da humanidade
sejam apenas uma questão de má conjunção planetária, de uma errada ligação – ou
nomeação – dos astros que transitam pelo sistema solar. Que depois do dia 24,
quando Ceres, Caronte e Xena tiverem status de planeta, não haverá mais amores
infelizes, nem sonhos intranqüilos, nem solidão, nem suicídios e nenhum outro
motivo para atormentações, que são todas, quero acreditar, astrológicas.
*Jornalista, mestranda em Literatura
Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da
Morte"/Objetiva, ganhador
do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na
Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.
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