domingo, 27 de setembro de 2009




Traição

Por Graciliano Ramos

“Prezado amigo”

“Não tenho ânimo de assinar esta carta, nem de escrevê-la com a minha letra. Venho participar-lhe um ingente infortúnio. Prepare-se para receber a notícia mais infausta quer um homem de brio pode receber.
Saberá que servem de assunto a boateiros desocupados as relações pecaminosas que existem entre sua esposa e o guarda-livros da firma Teixeira & Irmãos. Envidei sumos esforços para reprimir comentários desabonadores. Inutilmente. O indigno auxiliar do estabelecimento que o amigo dirige, com muita competência, esqueceu benefícios inestimáveis e, mordendo a mão caridosa que o protegeu, ação negra, condenada com estrofes imortais pelo nosso imperador, ousou levantar olhos impudicos para aquela que sempre reputamos um modelo de virtudes.
E os sentimentos libidinosos do celerado foram bem acolhidos. Alguém viu esse ingrato passeando com a amante pelos arrabaldes, na aprazível companhia de uma respeitável matrona e duas gentis meninas, ignorantes das maldades que pululam neste mundo de provações. Também se julga com fundamento que o nefando par esteve umas tarde no Tanque, à sombra frondosa das mangueiras, como diz o poeta.
Enfim, meu caro, o seu nome está sendo atassalhado, vilmente atassalhado em todos os recantos da urbe.
Há poucos dias, num bilhar, o sedutor teve discussão acalorada com o digno órgão de justiça pública. Foram quase às vias de fato, e no decurso da contenda surgiram referências prejudiciais à honra de sua excelentíssima consorte.
Penalizado em extremo, trago-lhe estas informações lamentáveis. Peço ao Divino Mestre coragem e resignação.
Sou um dos seus amigos mais sinceros”.

Deixei cair a folha datilografada sobre o diário. Depois senti nojo. Afastei-a com as pontas dos dedos e abri o razão. Creio que não pensava em nada. Ou talvez pensasse em tudo, mas era como se não pensasse em nada. Pus-me a tremer com violência e a bater os dentes. Percebi que aquela atitude me condenava e esforcei-me por cerrar os queixos e dominar os músculos, o que não consegui.
-João Valério – gemeu Adrião – peço-lhe que me diga com franqueza...

Esfreguei os olhos para afugentar uma nuvem escura que flutuava entre mim e o livro aberto.
-A verdade, João Valério.

Atento no velho com espanto: tinha-me esquecido da presença dele.
-A verdade...

E lembrei-me de Nicolau Varejão, do doutor Liberato e do Miranda.
-Sim, João. Leu o papel?
-Que papel?

Meti os dedos pelos cabelos, sacudi-me para vencer um entorpecimento que se apoderava de mim. Adrião Teixeira avançou a mão e levou uma eternidade a apanhar a carta, que me entregou pela segunda vez. Reli aquela imundície e compreendi que era trabalho do farmacêutico. Estabeleci alguma ordem nas minhas idéias e contive os nervos. Afinal Adrião não tinha visto nada.
-Então, Valério, não responde?
-Responder... Ora está aí. De duas uma: ou o senhor não acredita, e neste caso...

Olhei, por cima das grades do escritório, as pipas de aguardente e os sacos de açúcar.
-Ninguém. Foram jantar. Continue – fez Adrião – E deixemo-nos de palavrórios difíceis, que não gosto deles. É verdade ou mentira?
-Mentira, naturalmente.

Depois de longo silêncio, Adrião falou desalentado:
-Sou uma besta. Não vai confessar, é claro. Mas... nem sei. Desde ontem esta miséria! Não dormi.

Acendeu um charuto, sentou-se, pesado, junto à máquina de escrever.
-Vamos, João! – exclamou. – Eu preciso tomar uma providência, uma providência razoável. Desquite, separação decente.
-Não há nada – assegurei fechando os livros. – Era o que eu ia dizer há pouco. Se o senhor não der crédito a esta infâmia, pode dispensar a minha resposta; se der, ainda que eu jure mil vezes...
-E você é capaz de jurar, homem?
-Com certeza.
- Ah, sim! – murmurou o infeliz. – Não crê em Deus. Não crê em nada. Ninguém crê em nada. E pensar que o tive em conta de filho! pensar que...Vão-se embora.

Interrompeu-se para falar a Vitorino e aos empregados, que entravam.
-Fechem, podem retirar-se. Cinco horas? Bem, deixem uma porta aberta. E você mano... Fechem isso! Por quem esperam?

Quando eles saíram, soltou o charuto apagado, cruzou as pernas e pôs-se a bater com o calcanhar no tablado do escritório. De repente levantou-se, agitou os punhos:
-E eu o julguei amigo seis anos! É duro! E tinha inteira confiança... Podia imaginar tudo neste mundo, tudo, menos isto. Ainda ontem descansado, longe de sonhar... Defenda-se.

Por amor de Luísa, menti descaradamente:
-Defender-me? E de quê? Eu tenho lá que me defender! Uma carta anônima. Isto vale nada!
-E a sua cara! Você nem sabe mentir.
-É suposição. Não tem fundamento. Que foi que o senhor viu? Notou alguma transformação em sua casa? Não notou. E então! Quer à fina força que eu confirme esse disparate que o Neves inventou, o Neves, um sujeito conhecido.
-O Neves?
-Não foi outro. Não há aqui ninguém capaz de semelhante patifaria. O Divino Mestre, leia. É ele, não tem dúvida. E o mundo de provações, veja. Não foi senão ele.
-É exato – ciciou Adrião. – Deve ter sido ele. Um malandro. Mas o casso é este: andam atassalhando o meu nome em todos os recantos não sei de quê, pelos bilhares. E o culpado é você.
-Eu? Eu tenho nada com isso! É um absurdo, uma acusação injusta, sem prova. Não me defendo. De quê?

E cruzei os braços. Adrião encarou-me:
-É possível que você esteja inocente. Se estiver, perdoe-me. E é possível que seja um traste. De qualquer maneira compreende que não pode ficar nesta casa.
-Compreendo.
-É necessário sair logo.
-Perfeitamente.
-Vamos então balancear isto. E faça-me um favor. Promete?
-Prometo – respondi sem refletir.
-Pois bem. Eu sei que você recebeu uma proposta do Mendonça. Aceite agora a proposta. Amanhã liquida aqui os seus negócios e coloca-se lá. Depois de um mês, deixa o Mendonça e vai para o Recife ou para a Bahia. Acho conveniente não mudar-se logo, para não dar na vista. O Mendonça... você entende... melhor ordenado... um pretexto. Fale com ele. Estamos de acordo? O mês vindouro, como ficou resolvido, para a Bahia. Leva uma carta de recomendação.
-Muito obrigado. Estamos de acordo, mas não aceito a recomendação. Vou para o Rio.
-É bom. E amanhã o balanço.
-Até amanhã.

Saí. Entrei no estabelecimento do Mendonça. Mendonça não estavas. E Mendonça filho? Também não estava, fora passar uma procuração no cartório do Miranda.

Corri em busca de Isidoro, queria confiar-lhe tudo.
-Ó dona Maria, chame o Pinheiro – gritei da porta.

Tinha ido à casa do Miranda. Respirei com alívio, porque de súbito me havia aparecido um grande acanhamento de contar aquela desgraça.

Desci a rua dos Italianos e estive de longe olhando o jardim, a varanda do casarão. Senti um nó na garganta, engoli um soluço e dirigi-me à rua de Baixo, como se fosse tratar de algum negócio urgente. Não ia tratar de coisa alguma, mas precisava agitar-me, andar depressa.

Ao passar pela rua Floriano Peixoto, achei conveniente embriagar-me: subi ao Quadro, fui ao Bacurau e pedi conhaque. Bebi um cálice, pedi outro, pedi o terceiro. Acendi um cigarro e esperei o efeito do álcool. As minhas idéias tornaram-se mais lúcidas; o que senti foi um aperto no coração e desejo de chorar. Bebi o último cálice, levantei-me e enfiei pela rua de Cima.

Adiantei-me até o Melão. Noite fechada. Recuei, decidido a procurar padre Atanásio, distrair-me conversando com ele. Dei uma caminhada ao Chucuru.
-Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

Não se via quem falava, porque a escuridão era grande. Nem se ouviam os passos: o vulto movia-se como uma sombra. Mas pela voz, muito suave, reconheci o caboclo. Que andará ele fazendo por ali àquela hora? Talvez procurando recurso para me pagar quinze mil réis que lhe mandei quando esteve preso. Pagava. Mata para roubar, mas não deve dinheiro a ninguém.
-Boa noite, Manuel Tavares. Passeando?
-Sim e não. Sim porque gosto de caminhar, não porque estou de serviço. Vou levar um ofício a Quebrangulo.

Recordei o corpo de gigante, as mãos enormes, os olhos miúdos, o rosto duro, a barba emaranhada, tudo a contrastar com a doçura da voz.
-Do promotor, o ofício?
-Não senhor, do doutor delegado. E agora estou ajudando o destacamento.
-Ah! Você é soldado?
-Sou e não sou. Soldado, propriamente, não sou. Pra fazer sentinela não sou. Mas quando há diligência, trabalho do cão, e os macacos do governo amanhecem, sou.
-Pois é um bom emprego, Manuel Tavares. Continue.

Às nove horas entrei na redação da “Semana”. Padre Atanásio, debruçado sobre a mesa, dormia profundamente, o rosto escondido nos braços. Respirava com ruído e tinha roxas as orelhas enormes. Sentei-me à banca que foi minha, lá desocupada desde janeiro. Obedecendo a um velho hábito, abri a gaveta e tirei um maço de aparas de papel.
-Por aqui, seu Valério! – exclamou o sargento chegando à porta da tipografia. – Pensei que nos tivesse deixado. É uma ingratidão. O seu Pinheiro é que não falha, pontual, firme nas Sociais. Quer que acorde o patrão?

Fiz um gesto negativo com a cabeça.
-Sabe se o doutor Castro está na cidade, sargento? – perguntei bruscamente, levantando-me.
-Não sei. Ele também aparece aqui às vezes. Até escreveu uma poesias. O senhor leu? Uma história de luar e de sapos. Saiu no fim da quarta página. O reverendo meteu dois versos que faltavam, mas seu Miranda diz que está tudo quebrado. Brigaram. Julgo que o casamento gorou. O senhor não traz nada?
-Não trago nada, sargento. E isso é exato, a briga deles? Adeus.

Que azar de Clementina! Sempre os casamentos que dão em ossos de minhoca! Melhor para ela. Antes continuar arranhando, que um marido como aquilo não presta. É melhor para mim: ia procurar o Pinheiro, o que não faria se receasse encontrar o bacharel.

Ao passar pela casa do Miranda, vi Clementina na janela:
-O Pinheiro está aí, dona Clementina?^
-Está, sim senhor. Fizeram um jogo lá dentro, por causa do doutor Barroca, que chegou hoje.
-A senhora faz o obséquio de pedir a ele que venha até aqui?
-Ao doutor Barroca?
-Não senhora, ao Pinheiro.
-Pois não. Por que não entra? Estão na sala de jantar, o Valentim Mendonça também. Entre.
-Ah! O Mendonça está aí?

Acompanhei-a. Diante da mesa de jogo falei duas vezes antes que os parceiros me respondessem: tinham os olhos em chamas e puxavam as cartas uma a uma, lentamente. Finda a partida, Evaristo Barroca estendeu-me a mão com aquele modo de superioridade protetora, que lhe fica bem e que abomino.
-Ó Pinheiro, dá-me aqui fora uma palavra? É um instante.
-Impossível, meu filho, inteiramente impossível. Ocupadíssimo. O poker é uma grande instituição. Faça uma perna.

Detesto as cartas, mas naquela ocasião julguei que elas me seriam úteis. Se o Teixeira soubesse que eu tinha estado a jogar, talvez se imaginasse injusto.
-O senhor entra? – pergunto Evaristo baralhando.
-Entrada de quanto?
-Cem mil réis – disse o tabelião entregando-me as fichas.

Paguei e sentei-me.
-Cinco mil réis?
-Cinco – respondeu Evaristo. – O senhor joga? Pois sou forçado a reabrir. Quer cartas?
-Duas.

Evaristo Barroca soltou o baralho.
-Fala o senhor.
-Mesa.

E pensei nas amarguras que me iam aparecer no dia seguinte. O que eu devia fazer era esperar o Neves à saída da sessão de espiritismo e dar-lhe uma sova. Era o que eu devia fazer, mas sou um indivíduo fraco, desgraçadamente.
-Para iniciar aposto apenas uma – disse Evaristo com aquela voz sossegada, aquele olhar tranqüilo que nunca mostra o que ele tem por dentro.
-Vejo, doutor.

E atirei a ficha.
-Que tem o senhor? – perguntou ele.

Mostrei uma trinca de damas.
-Ganha.

E franziu os beiços delgados.
-Homem, essa agora! – exclamou Valentim Mendonça. – O doutor estava feito. Como foi que o senhor conheceu que aquilo era bluff? O doutor não pediu.

Abandonei um par de ases.
-Preciso falar com o senhor hoje ou amanhã cedo, seu Mendonça. Com o senhor e com seu pai. Ele está aí?

Mendonça filho levantou o queixo quadrado e propôs que fôssemos procurar Mendonça pai. Se era assunto de interesse, devíamos ir logo.
-Como! – bradou o Pinheiro. – Negocia a esta hora? ÉR uma indignidade. Outro bluff, doutor? Muito bem. O bluff é uma grande instituição. Dê carta, Mendonça, que diabo! Você está namorando com o Valério?

Arrancou uma reabertura com trinca branca e atacou o Miranda, que tinha seqüência.
-É possível? Você pede duas e faz seqüência? E máxima? Abra os dedos, criatura, isso assim na mão ninguém vê. Confiança, naturalmente, mas jogo é na mesa e tenho visto muita seqüência errada.

Joguei duas horas, distraído.

O que eu queria era saber por que razão não me vinha o ânimo de esbofetear o Neves numa tarde, à porta da farmácia. No bilhar do Silvério levantei o taco para rachar a cabeça do doutor Castro. E arreceava-me de molestar o Neves. Por que será que aquele velhaco me faz medo?
-Joga?
-Jogo – respondi separando três reis.

Evaristo reabriu.
-Outra reabertura, doutor? Santa Maria! O senhor leva o dinheiro todo – reclamou Valentim Mendonça.

Tirei um rei. Evaristo e Mendonça não quiseram cartas.

Já que me faltava coragem, não seria mau dar cinqüenta mil réis a Manuel Tavares e mandar que ele desancasse o boticário, no Chucuru, que é quase deserto.
-Fala você, João Valério – resmungou o tabelião. – Assim, não se acaba isto.
-Aposto duas.
-Duas e mais quatro – disse Evaristo.

Mendonça fugiu.
-Vem ver?^- perguntou o Barroca.
-Não senhor, reaposto. Mais quatro.

E deitei na salva as oito fichas que me restavam.
-Vamos então com mais oito – gracejou Evaristo. – E desta vez estou forte, pode crer.
-Ainda, resposta, doutor? Vejo. Dê-me aí oito fichas, Pinheiro. Vejo com um four sde reis.
-Perde – fez Evaristo calmamente.

E mostrou um four de ases. Levantei-me.
-Safa! – exclamou Valentim Mendonça. – Já é ser caipora. Onde estava eu metido! Deixa? Também vou. Os senhores continuam?

E contou as suas fichas, aspressado, entregou-as a Nazaré para recolher.
-Ó Pinheiro – chamei – quando você voltar para casa, preciso falar-lhe, ouviu? Boa noite, meus senhores.

Isidoro, que chorava as cartas com ferocidade, teve um grunhido que terminou numa praga:
-Ora pílulas! Estas miseráveis estragam tudo no fim. Vão-se embora, hem? É uma traição.

Saímos. Quando nos separamos, à esquina da padaria, Mendonça interrompeu o estribilho que ia cantarolando:
-Então esse negócio que tem conosco...
-É isto. Os senhores me fizeram uma proposta por intermédio de padre Atanásio.
-Sim, em dezembro.
-E escreveram insistindo. Respondi que não aceitava, mas que, se me desempregasse, contassem comigo. Caso ainda estejam pelo oferecimento... Deixo os Teixeira.

Lembrei-me de que tinha prometido a Adrião só ficar na cidade um mês.
-Isto é, se houver vaga. Não quero prejudicar ninguém.
-Há vaga – confessou Mendonça. – O guarda-livros de lá enrascou a escrituração e levou-o o diabo. O senhor teve algum pega com os Teixeira?
-Ah! Não! É que há vantagem. E ando necessitado. A crise... Adeus.
-Apareça.

Desci até o fim dos Italianos, encostei-me à esquina do armazém.

Vigia prolongada. Se pudesse falar com Luísa... De quando em quando surgiam sombras entre as palmeiras do jardim, mas era a minha impaciência que se distraía a criar fantasmas. Acerquei-me da grade.

Esperança doida de encontrar Luísa. Que lhe teria dito o Adrião? Imaginei-o de pijama e chinelos, coxeando pelo quarto, a bradar com os punhos cerrados: “Pensar que sempre tive confiança na senhora! Defenda-se!”. E a carta, cem vezes relida, amarrotada entre os dedos magros.

Desgraçado desejo de conhecer as coisas. Melhor teria sido para ele não acreditar na denúncia e continuar como ia.

Voltei para a calçada do armazém e ruminei o procedimento do Neves. Que interesse tinha ele em revelar aquilo? Nenhum. Mostrar que sabia.
-Animal infeliz! – exclamei em voz alta.

Referia-me ao Neves, a Adrião, a mim, ao Miranda Nazaré, a toda a gente. Necessidade idiota de saber e espalhar o que sabemos. Depois de muitos dias ou muitos anos de canseira e conjetura, um sujeito descobre uma lei da natureza – outro faz uma carta anônima contando os amores de Luísa Teixeira com um João Valério como eu.

(Capítulo 26 do romance “Caetés”, Editora Schmidt, Rio de Janeiro).

Um comentário:

  1. Que grande escritor, hein! Que superioridade literária! Um cânone em si! Substantivo, mas de um substantivo que se basta e não tem nada de limitação; pelo contrário, é por dispor de inúmeros recursos que Gracialiano se dá ao luxo dessa sua economia elegante.

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