Russland 2 – Beirando o Parque Nacional
* Por
Urda Alice Klueger
Para Mário e Synova
Lindner, meus primos.
É a terceira semana
seguida que volto a procurar o abrigo deste lugar que hoje é conhecido como
Nova Rússia, mas que na minha infância se chamava Russland. Um estresse
explícito fez com que corresse para cá, e hoje, na terceira vinda, já melhorara
o suficiente para ter vontade de caminhar, e ao pôr-do-sol tomei o rumo das
estradinhas antigas que se entrecruzam bem por aqui onde me hospedo.
Saí com meu cachorro
que ainda é um aprendiz da vida, como também eu o sou, e passamos a igrejinha
católica, e a escolinha onde as crianças estudam até a quarta série, e uma
ponte sobre encachoeiradas águas de um riozinho num leito que parece enterrado
lá no fundo – bem no momento em que três mulheres que vinham vindo comentavam
sobre como a enxurrada de 1983 fizera aquelas águas ali subirem tanto que
carregaram a ponte onde agora estávamos. Parecia uma coisa incrível imaginar
tudo ali cheio da violência de águas assim encachoeiradas – mas recordo bem que
em 1983, além da Grande Enchente, houve as enxurradas muito mais horrorosas, e
esta que passou por aqui e tomou o rumo da Rua Emílio Tallmann sou até capaz de
lembrar o dia: 17 de dezembro, quando as casas já estavam limpas e enfeitadas
para o Natal. São–me muito vivas, neste momento, algumas lembranças daquele
dia, como as montanhas de lama que soterravam as casas, com os pinheirinhos de
Natal retorcidos e coloridas bolas de vidro quebradas no meio do entulho geral,
e de um cachorro peludo sendo levado na garupa de uma moto, onde a gente só
entendia que era um cachorro por causa dos olhinhos assustados no meio do que
parecia uma bola de lama. Naquele tempo meu primo Mário Lindner e minha prima
Synova eram vivos, e eu tomara o rumo da Garcia para tentar ajudar em alguma
coisa, e penso que as lembranças nunca se apagarão – só que jamais imaginaria
que a tromba d’água tivera tal intensidade cá na altura do Russland, a ponto de
ter carregado a ponte que está a poucos metros daqui. É-me muito difícil
imaginar esta paz de paraíso toda revolta e encachoeirada, porque aqui se está
muito próximo das tantas nascentes, e não há poluição mais para o alto – o
encachoeiramento da enxurrada deve ter sido de águas brancas e limpas, e por
maior que fosse a hecatombe, se tivesse sido de dia, talvez tivesse sido linda
como uma maré cheia – só que foi de noite, lembro bem, e o horror do acontecido
não deve ter levado em conta se a água era poluída ou não.
A 200 metros daqui
está o pequeno cemitério da Nova Rússia, poucas dezenas de túmulos, quase todos
muito antigos, alguns até já com os nomes apagados pela ferrugem ou pelas
intempéries – num deles dorme meu bisavô Klueger, imigrante que chegou aqui
nesta Russland em 1858, pelo que me lembro. Entrei lá, na grande paz verde
daquele minúsculo cemitério, na grande paz verde e azul dos morros
circundantes, e de novo soube que é lá que eu gostaria de, um dia, dormir para
sempre, entre tantos Klueger, entre tanta História, entre caminhos abertos a pé
de índio e que se cruzam por aqui. Pensei: teria a grande enxurrada de 1983
chegado até aquele cemitério que é como que um abrigo único e como que
inatingível? Penso que não; a estradinha sobe um pouquinho antes de chegar lá.
Então, enquanto o
crepúsculo crescia, andei mais por estradinhas que se bipartiam, e passei por
uma igrejinha luterana, e por umas poucas casas que pareciam com a casa dos
meus avós, em Lontras/SC, onde, nos fundos, ainda havia ranchos de vacas, e de
lado, lagoas com patos e marrecos nadando. Passei a prestar atenção nas águas,
então, e é impressionante a quantidade de nascentes desta região! Parece que a
cada pequeno magote de árvores mina um fino fio d’água que se vai juntar a
outro, e a outro, e a outro, e logo há ribeirõezinhos acompanhando as
estradinhas – havia, mesmo, que se criar aqui o Parque Nacional para as
Nascentes, nestes tempos em que a água vai se tornando coisa cada vez mais
preciosa!
Blumenau, 03 de Abril
de 2008.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e quatro livros (o 24º
lançado em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez
edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
O mundo sob suas letras fica mágico, múltiplo, impressionante.
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