segunda-feira, 9 de maio de 2016

Sem piedade

* Por Daniel Santos

Nos reencontramos na festa de um amigo em comum e, embora sem notícias um do outro há mais de quarenta anos, nos reconhecemos de imediato. E voltei a detestá-lo com a fúria irracional dos verdes anos.

Diante dos demais, demo-nos tapinhas amistosos como íntimos de longa data. Íntimos, sim. Mas havia contas a ajustar, porque, muitas vezes, a memória põe a criança no lugar do homem e derrota a sensatez.

Por mais que o tempo passe, não esquecerei que ele foi o primeiro a ter bicicleta, mas nunca me emprestava. Nunca. Depois, na faculdade,  ganhou carro e convidava a todos para as farras ... menos a mim!

Nada justificava a discriminação, exceto sua ojeriza a amigos de baixa renda. Isso divertia os esnobes, cujas gargalhadas ainda ouço em pesadelos. Na festa, no entanto, ele se mostrava bastante solícito.

Descasado e desempregado, vivia péssima fase, mas não o consolei.  Em vez disso, estendi dedinhos de cobiça e gula à bandeja de brigadeiros. Peguei um, dois, na celebração da mais mesquinha das revanches.


* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.





Um comentário: