Sem
piedade
* Por Daniel
Santos
Nos reencontramos na festa de um amigo
em comum e, embora sem notícias um do outro há mais de quarenta anos, nos
reconhecemos de imediato. E voltei a detestá-lo com a fúria irracional dos
verdes anos.
Diante dos demais, demo-nos tapinhas
amistosos como íntimos de longa data. Íntimos, sim. Mas havia contas a ajustar,
porque, muitas vezes, a memória põe a criança no lugar do homem e derrota a
sensatez.
Por mais que o tempo passe, não
esquecerei que ele foi o primeiro a ter bicicleta, mas nunca me emprestava.
Nunca. Depois, na faculdade, ganhou
carro e convidava a todos para as farras ... menos a mim!
Nada justificava a discriminação,
exceto sua ojeriza a amigos de baixa renda. Isso divertia os esnobes, cujas
gargalhadas ainda ouço em
pesadelos. Na festa, no entanto, ele se mostrava bastante
solícito.
Descasado e desempregado, vivia péssima
fase, mas não o consolei. Em vez disso,
estendi dedinhos de cobiça e gula à bandeja de brigadeiros. Peguei um, dois, na
celebração da mais mesquinha das revanches.
* Jornalista carioca. Trabalhou
como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da
"Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo".
Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
A vingança chega a pé, vestida de branco, mas com sabor de chocolate.
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