Afinal, quem apóia esse governo?
* Por
Emir Sader
No inicio quiseram dar
a impressão que se tratava da grande maioria do povo se manifestando contra a
corrupção do governo, isolando uma presidenta no Palácio, bradando pela sua
derrubada. Manifestações que se revelaram de classe média alta e de burguesia,
de brancos, ricos, preconceituosos, que colocavam pra fora os piores clichês
contra a democracia, contra o povo, contra os direitos dos mais necessitados,
contra as organizações populares.
Passaram a dar como
fato consumado, nos seus editoriais, que havia uma “voz das ruas”, que pedia o
fim dos governos do PT. A forma, os meios, os personagens, já não interessavam.
Avançavam para conseguir o que não tinham conseguido, desde 2002, pelas urnas:
tirar o PT do governo, objetivo que unifica a toda a direita brasileira.
Conforme falharam as
tentativas que pareciam poder contar com mais evidências – fraude eleitoral,
acusações de corrupção, financiamento indevido de campanha –, as vias de
derrubada da Dilma foram se estreitando. Até que desembocaram no que tinham os
golpistas: o monopólio da mídia, a
maioria no Congresso e o silêncio cúmplice do STF, para montar a farsa que deu
no golpe, tal qual ele foi possível.
Não era a via que a
direita preferia, até porque nesta tem que depender do Temer e do PMDB que,
como a própria mídia difundiu, estão profundamente implicados em vários dos
casos de corrupção ventilados, muitos deles réus no STF. Mas foi o que restou:
montar o circo da votação daquele domingo 17/4, que funcionou para o que queria,
criou-se o cenário para a pantomima, mesmo com o desgaste da exibição nacional
e internacional do que é o Congresso: a cara do Eduardo Cunha.
O objetivo principal
foi obtido: tirar o PT do governo, da forma que fosse, com quem fosse, ao preço
que fosse. Aí veio a batalha pelos cargos, mas já no marco da reapropriação do
governo pela direita.
O eixo de conteúdo do
governo está nas mãos do Henrique Meirelles, via de reimplantação do modelo
neoliberal e conduto de relação com o grande empresariado, em primeiro lugar
com os banqueiros, que representam a espinha dorsal da economia especulativa
que ainda comanda o pais.
Meirelles não deixa
ilusões: vem duro ajuste fiscal, com cortes pesados em todas as áreas,
especialmente nos recursos para políticas sociais. A obsessão pela
desvinculação constitucional dos recursos para educação e saúde nos orçamentos
federal, estaduais e municipais, vem em primeiro lugar, para usar os recursos
para outras atividades, somando-se ao ajuste das contas publicas. A revisão de
todos os programas sociais – no sentido mais amplo da palavra, incluindo os do
já extinto Ministério de Desenvolvimento Agrário e outros que atendem a setores
populares – combina uma suposta “moralização”
no uso dos recursos públicos, com a exclusão de amplos setores populares
dos benefícios e direitos conquistados. A precarização das relações de
trabalho, o achatamento do salário mínimo e um conjunto de medidas aprofundam a
recessão e o desemprego, acompanham o cruel e violento ajuste anunciado pelo
Meirelles, que diz ter apoio da sociedade para elas. O aumento de impostos será
uma realidade, apesar dos protestos da Fiesp, assim com a revisão da
aposentadoria, apesar do protesto da Força Sindical. Retoma-se um acelerado
processo de concentração de renda e de exclusão social.
As reações à formação
do governo e ao anúncio das primeiras medidas foram muito fortes. Tanto as reações
populares, que intensificaram suas mobilizações conforme a usurpação do governo
pelo golpe ganha contornos claramente antissociais e antidemocráticos, como as
reações no plano internacional, em que nunca o país teve um governo com imagem
tão unanimemente condenada, nem sequer na época da ditadura militar.
Alguns órgãos da mídia vão delimitando distâncias
em relação ao governo, pela sua composição e por uma parte das suas medidas,
políticos e alguns partidos manifestam seu descontentamento, já não há
manifestações da direita nas ruas. O movimento pelo golpe foi murchando e o
protagonismo fica nas mãos de um governo medíocre, composto por muitos
corruptos cujos escândalos vão aparecendo ou reaparecendo, em que várias vozes
dizem que “mereciam algo melhor”, como
se esse governo não fosse expressão direta das vergonhosas manifestações de rua e da votação daquele 17
de abril na Câmara, e não tivesse no Eduardo Cunha seu maior articulador. É sua
expressão mais genuína, apoiada pelos evangélicos fundamentalistas, pelos
lobbies no Congresso, pela mídia mais sem pudor, como a Globo, pelos
personagens mais grotescos que fizeram parte da pantomima do golpe. Semearam
esse golpe e têm ai o governo que podem colher.
Mas não devemos nos
iludir que as diferenças e os descontentamentos internos no bloco golpista
possam levar a colocar em risco o projeto golpista. Porque as alternativas são
de muito risco para todos eles: por uma votação, hoje improvável, no Senado,
Dilma retomar à presidência, com o anúncio ja feito de que o Lula seria o
coordenador de um novo governo. Ou novas eleições, em que os golpistas estão
pior preparados do que nunca, com o esfacelamento definitivo dos tucanos, o
novo desgaste da Marina ao apoiar o golpe e nomes inexpressivos e queimados, como
o Cristovam, o Álvaro Dias, o Bolsonaro. Querem tratar de evitar uma nova
circunstância como a que permitiu a eleição do Lula em 2002, com o alijamento
deles do governo por quase 13 anos.
Quem apoia esse
governo? Todos os que foram postergados pelos governos do PT, descontentes,
como o grande empresariado, em particular os banqueiros, a mídia monopolista
privada, os partidos que hoje disputam lugares no governo golpista, o governo
dos EUA, e os setores radicalizados à direita da classe média. Todos os que assumiram que tirar o PT do
governo é o seu primeiro objetivo, o que os uniu. Os descontentamentos e as
diferenças entre eles não são suficientes para que permitam, por si sós, um
retorno de um governo que não esteja sob seu controle.
Mas, ao mesmo tempo, o
isolamento do governo em relação à população e ao mundo, pode levar à sua crise
prematura, pelas fragilidades de quem deveria comandá-lo, da composição que faz
dele o pior governo que o país ja conheceu, das medidas duríssimas que
anunciam, pelas extraordinárias manifestações de repudio ao golpe ao governo
que surgiu dele. Conforme ele se revela como um projeto sem nenhuma
ideia-força, sem legitimidade, sem quadros capazes, suas fragilidades lhe tiram
precocemente o fôlego para enfrentar situações tão adversas. Sua sobrevivência
custará um preço cada vez mais caro ao pais, mas também às forças que se
jogaram por inteiro na aventura golpista. Abre-se um período de disputa, em
novas condições, mas mais aberto do que nunca, cujo futuro depende da
capacidade da oposição a esse governo de fazer desembocar as enormes
mobilizações populares e o desgaste do governo em uma saída política
alternativa.
*
Sociólogo e cientista político
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