Na Itália dos meus sonhos V
* Por
Adair Dittrich
Nosso comboio em
direção ao nordeste da Itália seguia. Ao Vêneto. Ao encontro de minhas raízes
maternas. O encantado Vêneto. Veneza e Verona.
Nonno Marcelino
Castagna, o pai de minha mãe, o Nonno que eu não conheci era veneziano. Minha
mãe contava que ele usava um brinco, um grande brinco, um único brinco em forma
de uma grande argola de ouro. A argola de ouro pendente de uma orelha, a
característica dos vênetos de então.
E Veneza ali estava, líquida e deslumbrante,
espalhando-se pelas águas com toda a sua história, com todo o seu passado.
Na estação de Santa
Lúcia, em um guarda-volumes, nossas malas e seus carrinhos ficariam
armazenados. Levamos conosco apenas uma mochila onde colocamos o indispensável
que seria usado nos poucos dias que por ali ficaríamos e, num Vaporetto,
deslocamo-nos rumo à Praça São Marcos, em cuja cercania situava-se o nosso
hotel.
Maravilhoso o deslizar
pelas águas que envolvem Veneza. Ao lado os velhos palácios firmemente
sedimentados àquele solo que liquefeito parece, que sobre espelhos estar
deitados parece.
Acima de nós as pontes
que se multiplicam, as pontes que ligam os dois lados do Grande Canal. Entre
elas a mais imponente, a mais antiga, a Ponte do Rialto.
Em cada ponte faixas
rubras e azuis contam dos espetáculos musicais que a cidade oferece. Assim
anunciada estava a apresentação de “As Quatro Estações” de Vivaldi. Antonio
Vivaldi, maestro, violinista e compositor barroco que nasceu e viveu em Veneza.
Era cedo ainda quando
largamos nossa parca bagagem em um simples, barato e simpático hotel e
encetamos nossas caminhadas pelas tortuosas, estreitas e nunca confluentes
vielas e ruelas desta aquática cidade.
Um sem fim de vitrines
carregadas de peças com os mais inimagináveis formatos de coloridos objetos de
vidro de Murano e Burano a deslumbrarem os olhos.
Inimaginável também é
pensar que ao sair da Praça São Marcos é só seguir em frente, dobrar à esquerda
e na próxima esquina retorna-se ao ponto de partida. São becos que terminam em
outro filete de água onde gôndolas transitam e gondoleiros-tenores, com suas
capas ao vento entoam canzonetas de época.
E entre tantas coisas
a se ver neste emaranhado de becos e pontes havia uma ponte que eu jamais
poderia deixar de ver. A ponte que minha memória guardava das histórias de
mistérios e paixões em minha adolescência lidas. A ponte que liga um palácio a
uma prisão. A Ponte dos Suspiros. Para vê-la por fora só em passeio de gôndola.
Para vê-la por dentro preciso é visitar o Palazzo Ducale. Nada de
extraordinário ou de diferente das inúmeras pontes que cortam e recortam
Veneza, salvo o fato de ter sido o palco de passagem de personagens de
histórias regadas a sangue em um tempo em que nada se perdoava. E da ponte os
condenados da luz do mundo se despediam. E da ponte, o último hausto a sorver
um ar cheio de luz. E da ponte, o último suspiro ao sol da vida.
E a Veneza que se quer
ver espalha-se em torno a Praça e em torno a Basílica de São Marcos com seu
Campanário. E é de lá do alto que se vislumbra a Veneza toda, os canais e a
lagoa, o Lido, as ilhas todas e ao largo o Mar Adriático.
O entardecer na Praça de
São Marcos, a praça que não é um jardim, a praça que é um imenso espaço aberto
ladeado por construções que no decorrer dos tempos vêm sendo admiradas e
estudadas por suas intrigantes linhas e ângulos, suas majestosas colunas e
vãos.
Uma praça por onde desfila
o mundo, uma praça onde do mundo o ruído que se ouve é só o bulício de animadas
vozes, uma praça onde do mundo o ronco dos motores está a rolar pelas águas ao
longe.
Uma praça por onde
desfila o mundo jogando milho aos pombos.
Uma praça com a dança
contínua dos dourados grãos a voar pelo ar e a coreografia sem fim de brancas
asas revoluteado no espaço.
Uma praça que respira
música. Com orquestras a tocar nos quatro cantos. E quando ficávamos em um dos
cafés ou restaurantes, ao ar livre ou sob as abóbodas suspensas pelas grandes
colunas, desfrutando das melodias de uma delas, o som das demais não chegava
aos nossos ouvidos.
Sentamos por ali e
ficamos a ouvir belas melodias, em majestosos arranjos, executadas por
instrumentos tocados por músicos de escol. E entre as dos grandes compositores
do mundo, ouvimos as nossas clássicas “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso,
“Tico Tico no fubá”, de Zequinha de Abreu e “Brasileirinho” de Valdir de
Azevedo.
O anoitecer na Praça
de São Marcos foi um encanto a parte. Porque o desfile não cessa. Porque o ir e
vir não cessa. Porque a música não cessa.
*
Médica e escritora.
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