sexta-feira, 13 de maio de 2016

Na Itália dos meus sonhos V

* Por Adair Dittrich


Nosso comboio em direção ao nordeste da Itália seguia. Ao Vêneto. Ao encontro de minhas raízes maternas. O encantado Vêneto. Veneza e Verona.

Nonno Marcelino Castagna, o pai de minha mãe, o Nonno que eu não conheci era veneziano. Minha mãe contava que ele usava um brinco, um grande brinco, um único brinco em forma de uma grande argola de ouro. A argola de ouro pendente de uma orelha, a característica dos vênetos de então.

 E Veneza ali estava, líquida e deslumbrante, espalhando-se pelas águas com toda a sua história, com todo o seu passado.

Na estação de Santa Lúcia, em um guarda-volumes, nossas malas e seus carrinhos ficariam armazenados. Levamos conosco apenas uma mochila onde colocamos o indispensável que seria usado nos poucos dias que por ali ficaríamos e, num Vaporetto, deslocamo-nos rumo à Praça São Marcos, em cuja cercania situava-se o nosso hotel.

Maravilhoso o deslizar pelas águas que envolvem Veneza. Ao lado os velhos palácios firmemente sedimentados àquele solo que liquefeito parece, que sobre espelhos estar deitados parece.

Acima de nós as pontes que se multiplicam, as pontes que ligam os dois lados do Grande Canal. Entre elas a mais imponente, a mais antiga, a Ponte do Rialto.

Em cada ponte faixas rubras e azuis contam dos espetáculos musicais que a cidade oferece. Assim anunciada estava a apresentação de “As Quatro Estações” de Vivaldi. Antonio Vivaldi, maestro, violinista e compositor barroco que nasceu e viveu em Veneza.

Era cedo ainda quando largamos nossa parca bagagem em um simples, barato e simpático hotel e encetamos nossas caminhadas pelas tortuosas, estreitas e nunca confluentes vielas e ruelas desta aquática cidade.

Um sem fim de vitrines carregadas de peças com os mais inimagináveis formatos de coloridos objetos de vidro de Murano e Burano a deslumbrarem os olhos.

Inimaginável também é pensar que ao sair da Praça São Marcos é só seguir em frente, dobrar à esquerda e na próxima esquina retorna-se ao ponto de partida. São becos que terminam em outro filete de água onde gôndolas transitam e gondoleiros-tenores, com suas capas ao vento entoam canzonetas de época.

E entre tantas coisas a se ver neste emaranhado de becos e pontes havia uma ponte que eu jamais poderia deixar de ver. A ponte que minha memória guardava das histórias de mistérios e paixões em minha adolescência lidas. A ponte que liga um palácio a uma prisão. A Ponte dos Suspiros. Para vê-la por fora só em passeio de gôndola. Para vê-la por dentro preciso é visitar o Palazzo Ducale. Nada de extraordinário ou de diferente das inúmeras pontes que cortam e recortam Veneza, salvo o fato de ter sido o palco de passagem de personagens de histórias regadas a sangue em um tempo em que nada se perdoava. E da ponte os condenados da luz do mundo se despediam. E da ponte, o último hausto a sorver um ar cheio de luz. E da ponte, o último suspiro ao sol da vida.

E a Veneza que se quer ver espalha-se em torno a Praça e em torno a Basílica de São Marcos com seu Campanário. E é de lá do alto que se vislumbra a Veneza toda, os canais e a lagoa, o Lido, as ilhas todas e ao largo o Mar Adriático.

O entardecer na Praça de São Marcos, a praça que não é um jardim, a praça que é um imenso espaço aberto ladeado por construções que no decorrer dos tempos vêm sendo admiradas e estudadas por suas intrigantes linhas e ângulos, suas majestosas colunas e vãos.

Uma praça por onde desfila o mundo, uma praça onde do mundo o ruído que se ouve é só o bulício de animadas vozes, uma praça onde do mundo o ronco dos motores está a rolar pelas águas ao longe.

Uma praça por onde desfila o mundo jogando milho aos pombos.

Uma praça com a dança contínua dos dourados grãos a voar pelo ar e a coreografia sem fim de brancas asas revoluteado no espaço.

Uma praça que respira música. Com orquestras a tocar nos quatro cantos. E quando ficávamos em um dos cafés ou restaurantes, ao ar livre ou sob as abóbodas suspensas pelas grandes colunas, desfrutando das melodias de uma delas, o som das demais não chegava aos nossos ouvidos.

Sentamos por ali e ficamos a ouvir belas melodias, em majestosos arranjos, executadas por instrumentos tocados por músicos de escol. E entre as dos grandes compositores do mundo, ouvimos as nossas clássicas “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, “Tico Tico no fubá”, de Zequinha de Abreu e “Brasileirinho” de Valdir de Azevedo.

O anoitecer na Praça de São Marcos foi um encanto a parte. Porque o desfile não cessa. Porque o ir e vir não cessa. Porque a música não cessa.

* Médica e escritora.



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