A
conspiração do romance de Marco Albertim
* Por
Urariano Mota
A editora CEPE lança
neste domingo o romance “Conspiração no Guadalupe”, de Marco Albertim, na Feira
Nordestina do Livro, às 15 e 30. Divulgo a seguir o prefácio que escrevi para o
romance.
Quando o escritor
Marco Albertim faleceu em 10 de abril deste ano, sob o impacto do choque liguei
para a redação de um jornal no Recife. Então, com o cadáver saído do
necrotério, a repórter de plantão no domingo me perguntou “quem era Marco
Albertim?”. Eu respondi que para ele, o
magnífico autor que partia, ainda não havia soado a hora da justiça. E como
sempre acontece quando um repórter nos entrevista, o essencial passou
despercebido. Quero dizer, o mais importante não foi desenvolvido em perguntas
ou aprofundamento de significados. Passou ligeiro entre uma pauta e outra. Ou
entre o “já chegou o café?” e o toque no celular, que lhe mandava um urgente
WhatsApp. Se a vida passa e os jornais não a percebem, que dirá uma pessoa
fundamental longe da categoria das celebridades?
Mas o impossível ali,
recupero agora.
Chegava a ser irônico
que, perseguido na ditadura, Marco Albertim ainda não conhecera a justiça anos
depois da anistia. Se antes havia conhecido a negação absoluta de direitos e
leis democráticas, até mesmo no tempo dos governos eleitos pelas urnas, quando
podia ir e vir, discursar e escrever, ele continuava sem justiça. Mudavam-se os
tempos, mudavam-se as vontades, e continuava mudo. O reconhecimento público não
chegava. Para o fim da existência de um artista da palavra, a pergunta da
repórter era de uma estação agressiva, e, vá lá o eufemismo, desconhecedora.
“Quem foi Michel Teló?”, não se pergunta. Mas “quem era Marco Albertim?”,
cabia. Em defesa, ela poderia dizer que o seu hard de famosos merecia receber
um upgrade. E o chefe de redação, igualmente desconhecedor, a socorreria mais
ferino com a frase “a memória dos jornais é muito seletiva”. Na verdade, sorrio
com amargura, Marco Albertim ainda não havia sequer sido captado pelo flash
fugaz da memória humana da redação. E a culpa não era da jovem repórter, que
era esforçada e atenciosa. Ela havia até mesmo sido aplicada num dos 5 Ws do
manual do repórter, no Who, quando perguntou quem era o ilustre falecido. A
culpa – se usamos a palavra redutora – era do conjunto da sociedade que nos
esmaga a todos, que pulveriza tudo como um pozinho à toa.
E no entanto, o
escritor Marco Albertim há muito devia ser conhecido em razão da excelência do
que deixa escrito, e permanece. Entre muitos exemplos, destaco um do seu conto
Uma noite no cabaré, do livro “Ingrid tinha alergia à lama do Capibaribe”,
publicado pela CEPE em 2012:
“Do barulhento bordel
restou a sala da frente, alumiada por um candeeiro fumacento. Prateleiras
mofadas, furadas por cupins sob uma dezena de garrafas de cachaça, sortindo a
vista de três homens e uma mulher. O vendeiro, com a barba desigual, os cabelos
soltos, coçava o rosto com força, raiva. Engoliam com tremor convulso nas mãos,
na garganta. A mulher, velha, perdera a inquietação de ocultar rugas com ruges
inúteis; distraía-se com a bebida, no exame da rua abandonada. Os olhos luziam,
corados, a cada gole. Tinha o juízo enfermo, e putas com pó de arroz no rosto
dançavam na sua frente”.
E o conto segue, em
clima, desenvolvimento e frases que são uma honra para a escrita de qualquer
escritor. Ponto. Mas não, é preciso que se fale mais preciso do que realizou e
continua a caminhar além dos dias presentes. Marco Albertim, insatisfeito em
ser contista e autor de crônicas marcantes, na fronteira entre o literário e a
reportagem, diria, mas digo, em textos de muito boa literatura como em
“Palmares é uma poça de lama”, para mim o melhor quadro da devastação das
enchentes em Pernambuco, ainda assim, Marco Albertim levantou voo de outra
maneira, mais longo, no romance Conspiração no Guadalupe, que agora apresento.
O livro já entra com
ação, em um começo que prende a atenção, porque fala de amor, sexo e paixão na
noite de Olinda. Um triângulo amoroso se anuncia já no táxi que leva Maújo para
o clube Estrela, com Chica e Gertrudes. Triângulo? Mais. Se houvesse associação
das relações amorosas com figuras geométricas no livro, seria mais próprio
vê-las como um quadrilátero, com um ponto fora do espaço dos quatro, que
ameaçava formar um pentágono. Num reflexo típico daqueles anos de ditadura, na
noite da cidade de Olinda, os casais se formam e se desfazem. Eles são amálgama de militantes socialistas e
notívagos boêmios. O que vale dizer, políticos contra a ditadura, mas nada
ortodoxos, porque são feitos do barro da experiência.
“Os quatro cruzaram-se
a dois metros um casal de outro. Maújo, àquela altura, julgava Gertrude e
Caetano um casal; por sua comodidade com Chica, pela esperança de que a
ex-parelha não ficasse deserdada de todo. Seria capaz de sentar na mesma mesa
com os quatro juntos, cada par apostando na felicidade do outro; com ou sem o
efeito de daiquiris.. “
Neste romance, há o
reconhecimento e a legitimação criadora dos bares da noite de Olinda no tempo
da repressão fascista. Quem diria?
“O Estrela e o
Maconhão têm em comum o apodrecimento do ar. Maújo e Chica o sorviam mudos,
atenuando indistintas culpas. Acudia-os a sonoridade remota da rumba. Do lado
de fora, dois casais tramavam o delírio noutro retiro, em cama multicor, como
os olhos chispando liamba”.
A descrição
gastronômica é uma das melhores especialidades da escrita de Albertim. Há nele
uma gula carnal, que faz da cama um alimento, à semelhança da mesa que é uma
continuação do amor. Sabemos que assim é para a sensualidade de toda a gente.
Mas se assim é, poucos a expressam, como aqui:
“Ela riu, pressentindo
a luxúria nos limites; riu feliz com a possibilidade de se apropriar da
fervente luxúria. Ele manteve o corpo com o tórax sobre o ventre dela; sentiu,
nas escamas do rosto mal barbeado, a coifa escura dos pentelhos podados nas laterais,
com um traço em declive no meio. A felação mútua levou-a ao estupor....
Depois do banho de
mar, voltaram para o Maconhão; na mesma mesa, o mesmo garçom. Ovos com
presunto, pães fatiados, manteiga, suco de laranja. A celebração não fora
interrompida...
- Beije-me.
- Estou com fome.
- Moqueca?
- Quero peixe cru,
descamado, cobertura de coentro.
- Essa agora...
- Essa agora. Estou
com desejo.
O garçom trouxe postas
de pampo sem cabeça, sem a espinha dorsal, despeladas; ramos de coentro por
cima, sal, molho de soja; folhas de hortelã e raspas de gengibre. Queria Chica
sentir temperos fortes. Com o gengibre, abriria a boca para a brisa gelada..”.
Este é o romance de
Olinda. À medida que o lemos, mais claro se torna que é o livro da cidade, pela
impregnação de lugares, sabores e pessoas que bem conhecemos, e como um segredo
coletivo, de polichinelo, nem sempre dele falamos. Pela natureza do narrado é a
Olinda na cidade alta, do sítio histórico ao Maconhão, com os seus
intelectuais, artistas, jovens, álcool e fumo também. O Maconhão era o bar de
histórias antológicas de quedas, fracassos e encontros. Nele, certa vez um
amigo desejou ser solidário a uma professora, que embriagada se deitara ao lado
de um cachorro sarnento no chão. Ele pediu que ela se levantasse daquele lugar
sujo onde jazia ao lado do cachorro. E ela, rápido, com o sarcasmo no espírito
e na boca amarga:
- Por quê? Está com
inveja?
Aquilo era o Maconhão,
mais conhecido pelo nome civil de Bar Atlântico. Ele é um lugar da dissolução
de personagens. O bar que foi destruído, ali, ao lado do Fortim de Olinda, ou
Fortim de São Francisco, ou Fortim do Queijo, no romance ele sempre volta.
“À meia-noite desceram
para o Maconhão, de táxi. Muita gente, dentro e fora do bar. O salão escuro,
fluorescente nas prateleiras de bebidas, brilho indeciso nas luzes da radiola e
estrelas pingando raios nas mesas externas. Nas mesas, sonhos anarquistas, de
felicidade impossível... “.
O Pai Edu, em seu
terreiro e palácio, ressurge. Este romance, poderia ser perguntado, não possui
um certo Jorge Amado, quando apanha elementos de culto afro e substitui
Salvador por Olinda? As semelhanças são exteriores, penso. Em Conspiração no
Guadalupe não há uma substituição de paisagem, porque em Marco Albertim houve
uma apropriação de Olinda, da sua paisagem que não é só física, mas humana.
Neste sentido, ele pode assumir o lugar do narrador, do escritor que a cidade
até hoje reclama. Uma Olinda entre o popular, o espírito irreverente, o
demoníaco e sua rebeldia.
No livro, vemos o
terreiro em mistura a páginas onde recuperamos o prazer quase carnal daqueles
dias, carnal de carne e do carnaval, de Olinda. Sem folclorizar o que muitos
pensam ser folclórico.
“O Homem da Meia-Noite
despontara no começo da rua do Bonfim, rumo à praça, à avenida. Eles ficaram em
pé, sobre o arrimo de tijolos no sopé do outeiro. Sem daiquiris, proveram-se de
cervejas em latas.
O boneco gigante, com
os braços bambos, na frente da orquestra. Em volta, um cordão de segurança. Na
frente dos músicos, a diretoria, meia dúzia de embonecados homens, usando
roupas da mesma cor do boneco. No meio, junto ao presidente, o secretário da
prefeitura; vestindo uma camisa de cetim alvíssimo, brilhosa; sorrindo, os
dentes com o mesmo brilho da roupa, mesmo não sendo visto pela multidão.”
No capítulo Lá vem
Cariri Ali, os personagens, os subversivos em ação se organizam em meio à
passagem do bloco, de modo mais criativo, deles próprios e do autor.
“Cariri desceu a
escadaria do Guadalupe, seguiu para o Varadouro mas entrou à esquerda para o
Largo do Amparo; entrou na Estrada do Bonsucesso para parar lá embaixo. Os dois
seguiram, discutindo os termos da carta. A multidão espremeu-se na descida
estreita. Os dois foram empurrados, jogados por foliões sublevados. No
calçamento disforme, uma burrinha, provavelmente com fome, carregando um homem
com roupas de mascate. “Lá vem Cariri ali...” Os bêbados pulando em grupos de
quatro, seis, segurando-se nos ombros; uns caíam, levantando-se com a ajuda dos
outros; pisados nos pés, nas mãos, colididos nas costas. Os termos da
carta...”.
Entre os subversivos,
em doce sonho jamais liberto além deste romance, Bajado, o artista de Olinda,
adere à revolução. Bajado se torna um subversivo, mas sem forçar a nota, sem
artificialismo em que seria notado o impossível. Se não creem, vão direto à
página, para ver um Bajado em revolta contra as chamadas autoridades
constituídas. Eu nem cito, para não estragar o prazer.
É um romance que se lê
com um sentimento agradável e grave ao mesmo tempo, se me entendem. Quero
dizer, alegria das suas páginas, mas gravidade por saber das circunstâncias que
cercaram a última hora do escritor. Este é o livro cuja publicação matou de
alegria Marco Albertim, no dia em que recebeu a nova de que a editora o
desejava. Penso, enfim, que este livro nos devolve o escritor, para sempre, à
vida.
“O mar bramiu feito
uma orquestra. Maújo dormiu, sonhou com a parelha acenando-lhe adeuses felizes.
Tinha asas azuis nas costas, um bebê de rosto indefinido no braço”.
Eu soube que Marco
Albertim morreu dormindo no bar onde foi digerir a notícia. Mas até há pouco eu
não sabia que o personagem continuava vivo, anunciando o seu autor.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
As boas emoções podem nos matar para nos imortalizar, como foi o caso de Marco Albertim
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