Simulação consciente
* Por
Mara Narciso
Lenço longo amarrado
na cabeça, feito um turbante com pontas largadas de lado, sobre os ombros,
cobrindo todo o couro cabeludo. Pele clara e pálida, marcas roxas de machucados
no rosto e braços, olhar inquieto, aparência frágil, dentro de um vestido jeans
na altura dos joelhos, sem mangas e com botões na frente. Maria Aidê conta
estar tendo desmaios há quatro meses, e feito exames. Os dentes estão se
soltando e as gengivas sangrando. Esteve
algumas vezes no pronto socorro. Não está bem e os médicos não sabem qual é o
seu problema.
Ainda não a mandaram
procurar um psiquiatra, conta sorrindo, mas está fazendo psicoterapia há dois
meses. Sente-se fraca, com pernas fadigadas e dor de cabeça. Cai com
facilidade, e já se machucou feio. Não chega a desmaiar. Apenas, a qualquer
hora, com estômago cheio ou não, simplesmente cai no chão. Perguntada, não
explicita com clareza a sequência dos sintomas. Disseram que fica ainda mais
pálida, com suor frio. Pensaram em glicose baixa, mas não foi confirmado. Dia
desses, quando foi beber uma xícara de café, perdeu o equilíbrio e bateu o lado
esquerdo da testa na quina da mesa. O estrago está lá, visível, assim como a
ostentação de outras marcas pelo corpo.
Não aparenta estar
atormentada, mas tem ar de desamparo. Precocemente envelhecida para 50 anos,
não tem filho, mas pensou que teria um. Segundo afirmou, a menstruação
suspendeu por seis meses e a barriga começou a crescer. Sentia enjôos,
tonteira, desequilibrava-se, e foi ao ginecologista. Ainda que o ventre
estivesse proeminente, aparentando um útero grávido, o ultrassom não mostrou
feto. Mesmo depois do desmentido, a menstruação não veio e nem os enjôos
cessaram.
O que mais a incomoda
é a cefaleia, que não cessa. É intensa e acomete todo o crânio. Vem com
alterações visuais e náuseas. Toma analgésico irregularmente, mesmo nas crises.
Fala termos técnicos e não acredita no que dizem os médicos. Parece que seu
destino é sofrer, mas ir a consultórios a distrai. As pessoas não a entendem.
Querem que volte ao trabalho, mas não consegue. Está de atestado médico há três
meses. Cansou-se das imensas responsabilidades na fábrica. Trabalhava na
produção e não conseguiu descansar nas férias. Parece que voltou pior. Sente-se
sufocada pelo trabalho. Lembra-se da fábrica e faz vômito. Quando ouve a voz do
chefe, ainda que por telefone, o peito se aperta em angústia.
Há três meses os
cabelos começaram a cair às tochas. As melenas longas e lisas estavam se
soltando em grandes bolos. As peladas se instalaram, e foi preciso passar a
máquina zero. Disseram tratar-se de alopecia areata. Não procurou
dermatologista e nem está fazendo tratamento. Cobriu a cabeça com o lenço. Os
conhecidos a interpelam, perguntando se está em tratamento de câncer. Ela
desconversa, fala que não sabe, segura a ponta do lenço, olha ao longe, e
parece se nutrir da curiosidade alheia, que contraditoriamente a liberta.
Seus exames são
normais, desde o eletroencefalograma, ressonância nuclear magnética do crânio e
exames de sangue, inclusive marcadores tumorais, dentro das referências. Os
médicos continuam procurando por um câncer. A cabeça pelada sugere doença
grave, intensifica a imagem de fragilidade, tão freneticamente buscada.
Solicitada a descobrir a cabeça, retira o lenço, e mostra o couro cabeludo
normal, com cabelos de dois meses nascendo em toda a sua extensão, de forma
uniforme e exatamente simétrica. Não há cabelo mais fino ou desigual nem áreas
com menor pilificação.
Quando o mistério se
instala, e as queixas não encontram confirmações externas, o caminho é buscar
na mente as causas do transtorno. Hipocondria? Somatização? Simulação? Para não
cometer injustiças e nem atrasar o tratamento, é preciso ficar atento. Havendo
discrepância entre o que é queixado e o que é encontrado, pensar em simulação
consciente. Existem simuladores verdadeiros e aqueles erroneamente diagnosticados
como tal. No presente caso parece haver um desejo de se manter no papel de
doente. Um psiquiatra poderá dizer do que se trata, e tratá-la, para que não
mais precise da piedade alheia como alimento.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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