Banho de cuia
* Por
Clóvis Campêlo
Seu Afonso era um dos
biscateiros mais conceituados do Pina naquela época. Espécie de braço direito
do meu pai, era ele quem fazia tudo lá em casa, desde o esgotamento da fossa,
até a pintura da casa, serviços de encanador ou eletricista ou mesmo a
construção de algum cômodo extra.
Quando o meu pai comprou
os dois toneis de duzentos litros, cada um, para suprir a falta de água crônica
no bairro, ele foi convocado para cimentá-los e o fez com competência. No Pina
dos anos 60, a água só chegava nas torneiras à noite. Durante o dia, só na
torneira do quintal, entre os dois coqueiros vermelhos que o meu pai plantara e
que alimentava sistematicamente com salitre do chile, é que chegava um filete
incerto e frágil. Banho de chuveiro, nem pensar. O que prevalecia era o banho
de cuia ou, quando chovia, o banho na bica que ficava na quina do telhado, ao
lado do pé de goiaba branca da China.
Não era à toa que dona
Rosa havia construído no quintal da sua casa, no famoso Beco da Tapa, um
banheiro coletivo para os banhos públicos e pelos quais cobrava preços módicos.
Do mesmo modo, na Rua
Estudante Jeremias Bastos, onde eu morava, havia o chafariz público de dona
Quitéria, e outro no Encanta Moça, onde os vendedores de água abasteciam as
carroças puxadas por cavalos para vender o precioso líquido nas ruas e
comunidades próximas.
Essa situação só se
modificaria nos anos 70, com a construção pelo DNOCS do açude do Rio Tapacurá,
afluente do Rio Capibaribe, inaugurado em 1973, na cidade de São Lourenço da
Mata, e com uma capacidade máxima de 94,2 milhões de metros cúbicos. O açude
acabaria com os problemas de fornecimento de água na zona sul do Recife, mas,
nessa altura, já havíamos nos mudado do Pina.
Isso tudo me veio à
mente agora com a informação divulgada pela grande imprensa de que o
fornecimento de água no Grande Recife estará comprometido e racionado até o dia
10 de dezembro para priorizar a continuidade das obras da Cidade da Copa. Uma
sacanagem imposta pela FIFA e pelo grande capital internacional que vem
investindo nesse acontecimento. O futebol, hoje, faz parte da rentável (para
eles) indústria do entretenimento, justificando o abuso e o sacrifício da
população metropolitana.
Mesmo com o Recife
sendo apenas uma sub-sede, com a realização de um pequeno número de jogos,
somos obrigados a suportar isso. Já não basta terem alterado leis em vigor para permitir aos gringos
pagarem em dólares pela cachaça consumida.
Toda a infra-estrutura
exigida pelos organizadores e patrocinadores da Copa do Mundo de 2014 não visam
o bem da população, e sim, garantir a possibilidade de lucro para as empresas
investidoras. Para mim, o cúmulo da patifaria.
Enquanto isso, sou
obrigado a voltar aos banhos de cuia dos meus tempos do Pina.
* Poeta, jornalista e radialista,
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