Momentos mágicos
* Por Pedro J.
Bondaczuk
A vida é toda ela feita de mistérios,
pelo menos para nós, humanos, que somos tão arrogantes e presunçosos de uma
sabedoria que sequer possuímos. Desde a sua origem, que ninguém sabe com
certeza qual e quando foi, até o seu desfecho (a morte), valemo-nos de
complicadas teorias e fantasiosas hipóteses para tentar explicar aquilo que
sequer entendemos (e que talvez jamais venhamos a entender).
Como é morrer, por exemplo? A
consciência se perde com a decomposição do corpo ou fica em algum lugar? Se a
resposta for positiva (e a verdade é que ninguém a tem de fato), onde ela
permanece? Muitos juram que alguma parte de nós sobrevive, passa para outras
dimensões e é eterna. Outros tantos,
torcem o nariz a essa possibilidade, e ridicularizam os que crêem nela. Mas
saber, com certeza, o que ocorre durante e após esse dramático desfecho, sem
hora e lugar marcados, ninguém sabe.
Machado de Assis levanta uma
interessante possibilidade, que permanece no terreno da especulação, mas que
nem por isso deixa de ser válida. Escreve, em uma das suas crônicas: "Cada
criatura traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que
olha de fora para dentro".
Será? Há momentos "mágicos"
em nossa vida, cuja magia não conseguimos definir e muito menos explicar, mas
que sabemos que está ali, presente, viva e atuante. É alguma coisa que se passa
fora do plano físico, em nosso íntimo,
talvez no interior das nossas células, em algum ponto do cérebro,
aguçando a sensibilidade ao extremo.
Aparentemente, esses instantes são como
outros quaisquer, sem nada de especial. Independem dos acontecimentos. Não
avisam quando vão ocorrer, simplesmente ocorrem. Sequer os delimitamos, em
termos da data da ocorrência, já que somos tomados de surpresa. Mas são
inesquecíveis.
Por que? É um mistério! Passados muitos
anos, quando nos recordamos de tudo o que nos ocorreu (de bom ou de mau), são
eles que nos vêm de imediato à memória, como uma luz, como uma inspiração, como
um referencial ou como consolo nas horas de maior aflição.
Recordo-me, especificamente, de pelo
menos cinco desses momentos "mágicos", nitidamente, como se houvessem
ocorrido hoje, a meros segundos, mas que aconteceram há várias décadas, há mais
de meio século, tão ontem como se fora na própria infância do mundo.
O primeiro ocorreu quando eu tinha
apenas cinco anos de idade. Foi em Horizontina, no Rio Grande do Sul, na casa
do meu avô paterno, o saudoso Hilarion. Numa determinada manhã de início de
verão de 1948, sentado na varanda do casarão, que dava para uma escada de
madeira, tendo ao lado pés de mexerica ("bergamota", para os
gaúchos), de frente para um jardim florido que tinha, ainda mais adiante, a uns
trinta metros, um vasto parreiral, senti
uma espécie de "transfiguração". Nunca soube explicar não somente a
natureza, mas a morfologia desse fenômeno. Só sei que ele existiu e me deixou
profundas marcas (positivas, é óbvio!).
O dia estava parcialmente nublado, mas
não cinzento, com tímidos raios de sol filtrando por entre nuvens. A
temperatura era bastante agradável, pois não fazia nem frio e nem calor. Eu
estava sozinho, já que todos da casa cumpriam os seus afazeres normais.
Um cheiro adocicado de flor de laranjeira
embalsamava o ar e o aroma era tão intenso, que causava uma espécie de
embriaguez. Pássaros faziam uma algazarra enorme no meio das plantas,
disputando sementes ou vermes para alimentar os filhotes, mas não se ouvia voz
humana alguma quebrando a harmonia. Uma paz intensa desceu sobre mim.
Tive uma premonição de que, em breve,
não veria mais esse lugar que tanto amava. Minha mente como que
"fotografava" cada detalhe, cada nuance, cada objeto e cada pássaro e inseto ali presentes, que eu vira
tantas vezes antes e nunca prestara atenção, mas que naquele instante pareciam
importantes, transcendentais e únicos. De fato, poucos meses depois deixei
minha terra natal para sempre, vindo para São Paulo, em busca do meu destino.
Mas aquele momento "mágico"... jamais saiu-me da memória. Por que?
Nunca saberei explicar!
O segundo desses instantes misteriosos
viria a ocorrer seis anos depois, quando eu estava internado no Lar Escola São
Francisco. Era, novamente, final de primavera, véspera do verão. Nesse dia, teríamos
o exame de final de ano (estávamos em 1955), que me aprovaria para a quarta
série ou me manteria na terceira.
Eu não havia estudado nada. Por causa
de seguidas cirurgias, para corrigir seqüelas de uma poliomielite que me
acometera, eu havia perdido pelo menos três anos de escola. Estava
relativamente atrasado em relação aos companheiros. Ademais, começara a
freqüentar aulas apenas em agosto.
Estávamos
no pátio, esperando o início da prova, atrasado, já que, por alguma razão, o
inspetor que iria supervisionar o exame não tinha chegado. Meus colegas
brincavam... com bolinhas de gude, de pique, esconde-esconde ou amarelinha,
lembro-me bem. Alguns, mais preocupados, cientes de que não estavam devidamente
preparados, davam uma última olhadinha no caderno, na ilusão de reter, em cima
da hora, o que não haviam aprendido em meses. Eu, simplesmente, apreciava meus
companheiros.
Subitamente, a mesma
"transfiguração", ocorrida há seis anos, em Horizontina, se repetiu.
Uma paz imensa desceu sobre mim. Os sentidos ficaram estranhamente aguçados,
com sua capacidade bastante multiplicada. Via muito longe, para além do pátio,
iluminado por um sol brilhante, em um céu de azul total.
Apesar da tensão, uma paz absoluta
tomou conta de mim. Sentia que nada no mundo poderia me ameaçar e não havia o
que temer. Ouvia risos distantes, a cinqüenta metros ou mais de distância e
gritos e murmúrios de vozes. O aroma das flores, dos canteiros do pátio,
embriagava-me.
Era um momento para reter na memória. E
o retive. Mais do que isso... Como havia dito, não estava preparado para o
exame e tinha convicção de que seria reprovado. Nem minha professora, dona
Ester, acreditava que eu pudesse me dar bem. Não sei explicar o que aconteceu
depois da tal "transfiguração". Só sei que a minha prova foi a melhor
da classe.
Tirei nota dez, com louvor, e de quebra
ganhei uma medalha, que era como a escola estimulava a competição entre os
alunos, os motivando a estudar. Como? Jamais saberei explicar. Será que alguém
tem uma explicação plausível para isso? Duvido.
Recordo-me de pelo menos mais três
desses instantes mágicos, misteriosos, inexplicáveis e maravilhosos.
Certamente, minhas "duas almas" estavam alertas nesses momentos,
mostrando-me o verdadeiro sentido da vida. Ou pelo menos revelando que o meu
destino era ser "garimpeiro da beleza..."
* Jornalista, radialista e escritor.
Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981
e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras
funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e
“Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos &
Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário),
página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia
Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Pensando se já tive essa "transfiguração". Acho que não.
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