Não deixem morrer Batutas
* Por
Urariano Mota
Uma rara notícia dos
jornais nos dias de carnaval, que somente pude ler depois de muita pesquisa,
nos disse: “Um dos pontos altos do encontro dos Blocos de Pau e Corda aconteceu
no fim dos desfiles. O bloco Batutas de São José subiu ao palco apenas com
instrumentos de corda, pois a orquestra que tocaria com o grupo não apareceu.
Visivelmente prejudicada, a apresentação começou com as intérpretes fazendo
força para cantar praticamente à capela o hino da agremiação.
Após a primeira
canção, uma das integrantes desabafou. ‘Deram calote no Batutas!’ Quando já se
preparavam para entoar a segunda música, que ironicamente se chama ‘Não deixe
Batutas Morrer’, a orquestra do bloco Eu Quero Mais, que aguardava sua vez para
subir ao palco, socorreu a agremiação emprestando os músicos até o fim do
desfile. O público aplaudiu efusivamente a apresentação conjunta. O encontro
acabou com o desfile dos Blocos Pierrot de São José e Flabelo Encantado.”
Mas essa notícia, uma
nota burocrática, não diz tudo. O mal dos repórteres é não conhecerem a
história do que falam, por um lado. Por outro, é se porem à parte, digo melhor,
acima do que devem noticiar. E por último e por fim, andarem por tesouros de
humanidade como se passeassem por entre carrocinhas de hot dog. Na notícia, já errando o nome do hino, o
repórter quis falar sobre a pequena tragédia de Batutas de São José.
Mas quem é Batutas? No
Portal PE A-Z se informa:
“Um dos mais famosos
blocos carnavalescos do Recife, fundado a 05/06/1932, no bairro de São José.
Surgiu de uma dissidência do antigo Bloco Batutas da Boa Vista, hoje não mais
existente. Por várias décadas, manteve sua sede no bairro que lhe deu nome.
Atualmente, tem sede própria no bairro de Afogados”.
Mas isso é pouco. O
coral de Batutas de São José esteve presente em todas as Evocações de Nelson
Ferreira, com o seu canto mais lindo e inspirado, cheio do sotaque histórico do
Recife, como nos versos da Evocação número 1, em que canta: “Fi-líntu, Pêdru
Saugado…”, em lugar de Fê-lin-tô da adulteração mais recente. Batutas de São
José está presente em quase todas as canções que evocam a excelência do
carnaval do Recife. A começar pelo seu maior poeta e poeta maior, o compositor
João Santiago:
“Eu
quero entrar na folia, meu bem
Você
sabe lá o que é isso?
Batutas
de São José, isso é parece que tem feitiço
Batutas
tem atração que,
ninguém
pode resistir
Um frevo desses bem faz,
demais
a gente se distinguir”
Mas que diferença para
o Batutas neste 2015. Na segunda-feira de carnaval, eu acompanhei a sua marcha
de poucos integrantes, e me constrangi, e muito, ao ver os olhos de estranheza
que se dirigiam a mim, por acompanhar um bloco tão simples, de algumas pessoas
com fantasia, com alguns velhinhos de violão ao lado. Mas eu estava com o
Batutas de São José, eu me dizia, e apesar de constrangido, caminhava com esse
orgulho: “estou com Batutas”. Sabem lá o qué isso? Então saímos da Rua da Moeda, cruzamos em
silêncio a Avenida Rio Branco, pegamos a Rua da Guia, até o Cais da Alfândega,
quando desisti, desorientado, de acompanhar o mau presságio do que iria
acontecer. Na hora, me pareceu acompanhar uma procissão em segredo, ou marcha
fúnebre, num acompanhamento de enterro. Mas o Morada da Paz seria o Marco Zero.
O grande palco do carnaval.
Agora, a nota mais
deprimente. Batutas de São José me fez chorar, de tristeza e raiva, pelo estado
em que se encontra e se exibiu para todos. Batutas subiu no palco apenas com instrumentos de
corda, sem instrumentos de sopro. As
cantoras, sufocadas pelo som atrás, e pela ausência de músicos do bloco,
cantavam, sozinhas, “parará-ta-tá”, de boca.
A gente sabe que no
desconcerto geral do mundo, os valores de cultura, de humanidade, não têm mesmo qualquer ou nenhum
valor. Se valessem nada, seriam um valor. Mas não têm expressão nem guarida os
valores da memória mais querida de um povo. Quanto vale um resistente suburbano
que pula no frevo como pulavam os seus avós? Quanto vale uma cantora
envelhecida que entoa canções que ninguém escuta mais? Quanto vale o bloco
Batutas de São José?
João Santiago cantava
do amigo e compositor Álvaro Alvim:
“Não
deixem morrer Batutas
Não
deixem Batutas morrer
Batutas
tem um passado de lutas
Viva
Batutas, Batutas vai vencer!
Que
lindo bloco
Que
lindo é
Nosso
Batutas de São José
Tem
tradição, tem glória
Tem
história pra valer
Não
deixem Batutas morrer”
Penso que se
Baudelaire fosse vivo, certamente gritaria: “Deixem Batutas morrer”. Porque
isso deveria ser mais piedoso e humano que assistir ao descaimento em vida.
Sinto que parece existir nos bens coletivos o mesmo mal que assalta a nós
mesmos. Antes do falecimento, há uma decadência em vida, que assalta os
músculos até embotar o mais caro e querido que há em muitos de nós: a revolta,
a indignação.
Naquele palco do Marco
Zero, Batutas de São José cantou desentoado, em papel deprimente, toda a sua
glória que não existe mais. Como diria Baudelaire, deixem morrer Batutas. Seria
preferível ao triste espetáculo de um bloco iluminado em toda a sua miséria:
sem músicos, sem afinação, a cantar sem ironia, sem se dar conta do absurdo
“não deixem morrer Batutas, não deixem Batutas morrer…”.
Mas no G1 a notícia
foi:
“Um encontro de blocos
de pau e corda deu largada à programação desta segunda-feira (16) do maior pólo
de animação do carnaval do Recife, o Marco Zero. Ao todo, 15 agremiações
levaram cores e saudosismo ao palco, empolgando pernambucanos e turistas. Os
tradicionais blocos da Saudade, Batutas de São José e Eu Quero Mais foram
alguns dos mais aplaudidos”.
Onde é que estavam
mesmo os olhos dos repórteres? Por onde andavam distantes os seus corações? No
poema em prosa “Espanquemos os pobres”, Baudelaire nos fala que depois do poeta
espancar um mendigo, o miserável reagiu. E assim falou o poeta: “o homem
decrépito investiu contra mim, machucou-me os dois olhos, quebrou-me quatro
dentes, e com o mesmo galho de árvore me bateu forte. Com a minha enérgica
medicação do espancamento eu lhe restituíra o orgulho e a vida”.
Ah, se pudéssemos com
um vigoroso espancamento restituir o orgulho e a vida de Batutas de São José.
Ah, se pudéssemos vencer o mar imenso de indiferença pelo estado de miséria em
que se encontra. Por isso, cá do meu canto, eu que não sei cantar, chego a desejar
que deixem, sim, morrer o Batutas. Deixem o Batutas morrer.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Desde moça repito o mantra: antes a pobreza do que a decadência. Boa escolha morrer antes da decrepitude. E outra: a surra devolver orgulho e vida ao bloco.
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