Europa Brasileira - Abrigos - 1
* Por
Urda Alice Klueger
Como doações aos
desabrigados de Blumenau são convertidas em cifras de interesses, enchendo o
bolso não se sabe de quem? A resposta às contestações? “Há que esperar o final
das chuvas para se fazer alguma coisa. A senhora, por favor, tenha paciência!”
Ontem minha cidade de
Blumenau foi diferente. De repente, saído de todos os seus esconsos (pois a
imagem bonitinha de Europa Brasileira que se mantém QUASE preservada no centro,
com fundas camadas de maquiagem, como aquelas bisavós que querem continuar
parecendo gatinhas de 20 anos), uma população inteira de desvalidos saiu e até
fugiu dos abrigos públicos mantidos nas escolas do município e veio para praça
pública. Quem era essa gente? Eram os trabalhadores de Blumenau, aqueles que
gastaram grande parte das suas vidas para fazer a sua casinha, e que a
construíram, a pintaram, a muraram, fizeram jardins, esticaram redes nas
varandas para melhor poder conversar com suas mulheres ao por do sol, que nelas
criam ou já criaram seus filhos, que tinham aqueles lugarzinhos bonitos, com
cortinas na janela e roseiras perto da cerca – e que de um momento para o outro
viram a terra desmilinguir, virar gelatina se liquefazendo, e suas casas irem
embora dentro de mares de lama, tantas vezes levando junto entes queridos ... e
que acabaram nos abrigos públicos de que já falei acima.
Eu fiquei tão perdida
no tempo desde que tudo começou que já não sei desde quando eles estão lá (e eu
estou aqui, pois também sou uma desalojada), mas sei que foi logo a seguir do
dia 20 de novembro. 21? 22? 23? Já não sei, e também não importa o dia, pois
dia se emenda em dia, e semana em semana, e agora já está começando o terceiro
mês desde que tudo começou – e os trabalhadores da minha terra continuam
jogados nos abrigos, sem nenhuma perspectiva de terem sua dignidade restaurada,
e com a ordem de desocuparem os abrigos até semana que vem.
As injustiças são
tantas e que a gente ouve a cada hora, que é uma coisa arrepiante. O Brasil e o
mundo mandaram tantos donativos para cá que ficará difícil gastar tudo, mas
alguém fica com muita coisa no meio do caminho. Sei de um abrigo onde há mais
de mil sabonetes amontoados numa sala, mas que a pessoa que coordena o abrigo
não dá sabonete para determinado abrigado que dele necessita, porque não lhe
tem simpatia pessoal. E eu sei bem o quanto esse desabrigado é útil ao seu
abrigo; como trabalha, ajuda, limpa, prepara comida ... que será que leva essa
chefia de abrigo a ter tanta antipatia? Será que é porque não são da mesma
etnia? Olhem os guetos se formando na Europa Brasileira!
Eles têm que se ir,
sumir; a vida nos abrigos tem que ser a pior possível, para que os moradores
desistam, sumam das estatísticas
As histórias são
inúmeras, desde aquele sargento que, faz poucos dias, proibiu a carne para os
adultos de determinado abrigo, liberando-a só para as crianças – quando todos
sabem que há um congelador chapadinho de carne lá na cozinha, que veio das
tantas doações que todo o país mandou. E as roupas sujas de menstruação que se
deram às pessoas do abrigo tal, para que as usassem (nada havia sido salvo das
suas casas), enquanto gente do Brasil inteiro mandava roupas novinhas
novinhas... Começa a pergunta: quem ficou com tantas coisas? E um diretor de escola
que resolveu tratar logo os abrigados como porcos: picou aipim com casca e
tudo, e misturou um bocado de carne, e sem sal, sem tempero, sem preparo,
cozinhou aquela gororoba e só não mandou servir em gamelões porque deve ter
ficado com vergonha. E outro diretor de outra escola, que se sente o dono do
abrigo (a escola é publica, construída com legítimo dinheiro do contribuinte, e
o diretor é um funcionário público, com o salário pago com os impostos daquela
gente que está lá desvalida) e que não permite coisas básicas, como pais que
vêm de longe para saber a sorte dos filhos, e sequer podem entrar lá para falar
com os mesmos... e um outro chefe de abrigo, que vergonhosamente faz com que
cada abrigado seja revistado pelos soldados lá de plantão, mesmo que ele tenha
apenas ido até à esquina comprar um pão.
A lista das
humilhações e falta de respeito é tão grande que nem pensaria em tentar colocá-la
aqui. Mas taí uma amostra. E mesmo assim, esses trabalhadores da minha cidade
terão que deixar o abrigo dia 30.01. Muitos e muitos já acabaram desistindo dos
maus tratos e das humilhações e indo para a casa de amigos, ou voltando para as
zonas de risco, assinando documentos em que se declaram auto-responsáveis pelo
que vier acontecer, caso algo lhes acontecer. Eles têm que se ir, sumir; a vida
nos abrigos tem que ser a pior possível, para que os moradores desistam, sumam
das estatísticas – é bem diferente construir mil casas do que cinco mil casas –
sobra um dinheirão para os bolsos não sei de quem.
Pois é, gente, deve
ser por aí. Sei de algumas coisas: o Governo Federal colocou 1 BILHÃO e 700
milhões de reais à disposição dos atingidos – é um dinheiro ENORME. Sei que
isso abrange, também, construção de pontes, rodovias e correlatos, mas sobra
MUITO dinheiro para construir casas para os nossos trabalhadores. Parte será
emprestada por meio de financiamentos, mas parte também será repassada a fundo
perdido. E nada se faz.
Havia centenas de
pessoas diante da prefeitura pedindo justiça, e o prefeito fez o que é de praxe
em tais horas: sumiu, se escafedeu
E o dinheiro que o
santo povo brasileiro tirou do seu bolso, do seu contadinho, e mandou para cá?
Tenho cá anotado o número das contas:
-BESC Blumenau – Ag.
003 – conta 400.000-3
-Banco do Brasil
Blumenau – Ag. 095 – conta 400.000-5
-Caixa Econômica
Federal Blumenau – Ag. 411 – conta 80.000-0
Cadê tal dinheiro? Era
dinheiro para o povo, assim como as outras doações eram para o povo – e sei que
tem gente jogando caminhão de doação em beira de estrada porque já não há onde
guardá-la. E o meu povo, a minha gente trabalhadora e construtora de Blumenau,
a comer lavagem de porco e a usar roupas sujas de menstruação e a não ter
acesso a sabonetes, onde há muitos milhares esperando para serem usados?
E tem mais: semana que
vem, dia 30.01.2009, rua dos abrigos.
Então ontem o povo foi
para a praça, foi pedir explicações e justiça. Eu estava lá de três formas:
como observadora, pois sou uma escritora; como militante dos Movimentos
Sociais, e como desalojada também. Havia centenas de pessoas diante da
prefeitura pedindo justiça, e o prefeito fez o que é de praxe em tais horas:
sumiu, se escafedeu. Mas aceitou marcar uma audiência para a próxima terça.
Terça já vai ser dia
27, tão perto do dia 30! Será que é tudo uma questão de empurrar com a barriga?
Sei que os nossos trabalhadores vivem grande indignação e não têm o porte de
quem se humilha pedindo – a atitude daqueles homens, mulheres e crianças que
constroem Blumenau era de digna solicitação de direitos, e eu estava lá e vi tudo.
E também me lembro das tantas mensagens que recebi e dos tantos telefonemas que
vieram até mim dizendo coisas assim: “Tirei o pouquinho que me era possível e
depositei para Blumenau” ,“Depositei 20.000,00 reais para ajudar vocês”, e
assim vai. O meu telefone, depois que voltou a funcionar, não parava de tocar:
era gente solidária de todo o Brasil, de Cabo Verde, de Portugal, de Londres,
da Irlanda...
Toda essa gente merece
satisfação: desde aquele humilde baiano que vi na televisão, depositando o seu
troquinho de quem ganha salário mínimo, até aqueles que fizeram grandes doações
– como também os nossos trabalhadores, os mais espoliados dos espoliados, sem a
menor perspectiva do que lhes vai acontecer.
— Sai daqui! Passa!
Ligeiro! Senão vai ter cadeia! Seus arruaceiros!
É hora de obtermos
respostas, e muito rapidamente. Eu, por exemplo, fiz meu cadastro de desalojada
no dia 16.12.2008 – mais de mês, portanto. Deixei lá o endereço onde estou, o
telefone, o endereço eletrônico –- e até este momento nem uma vezinha alguém me
disse a mínima coisa. Imagino que alguém ao menos deveria dizer: “há que
esperar o final das chuvas para se fazer alguma coisa. A senhora, por favor,
tenha paciência!” –- mas nem isto.
Se não dão satisfação
a mim, conhecida como escritora bocuda, que publica em diversos continentes, o
que algum dia dirão aos trabalhadores que constroem esta cidade? Decerto dirão
algo assim:
— Sai daqui! Passa!
Ligeiro! Senão vai ter cadeia! Seus arruaceiros!
E aquelas pessoas que
doaram, e doaram, e doaram... estava na hora de alguém contar como as coisas se
passam.
Blumenau, janeiro de
2009.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR,
autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale”
(dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
Queda e coice simultâneos.
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