Afeto
na marra
* Por Daniel
Santos
De vez em quando, ainda me visitam. Nem
entram mais pela porta dos fundos, como antes, mas esperam que eu apareça na
janela do sobrado para me acenarem amistosos. É como se dissessem “tudo bem” e
se vão.
Ignoro o que pretendem desde quando me
surpreenderam a sós, me imobilizaram sem violência e tiraram mostras de pêlos,
unhas, saliva, sangue, pele ... Um acervo a meu respeito. Ou a respeito da
espécie?
Talvez estejam criando seres à minha
imagem e semelhança, me desdobrando noutros mundos. Têm planos para mim e nada
posso obstar! Não me querem mal, e admito certa reciprocidade, embora com cautela.
Trata-se, afinal, de afeto em
desvantagem: eles me quiseram, mas eu tive de aceitar a escolha, como criança
sob ordens de um adulto. Chegam a adivinhar minhas necessidades e, antes mesmo
de senti-las, eles provêm!
De duas, uma: ou sou previsível, ou
assim me tornaram para imposição dessa tutela que imobiliza e conforma. Já não
reajo, nem quero. E quando eles demoram a aparecer, vou até a janela dar uma
espiada.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter
e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha
de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Mistério total nesses contatos imediatos do terceiro grau.
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