O "viajante imóvel"
Os vínculos de Machado de Assis com o Rio de Janeiro foram
completos, absolutos, irrestritos, e não somente físicos (já que foi onde
nasceu, trabalhou, amou, odiou, viveu etc;etc.etc. e finalmente morreu), mas,
sobretudo, anímicos. Tanto que praticamente nunca deixou a cidade (e não foi
por falta de convites, destaque-se) para nada. A exceção foram duas breves
viagens para Nova Friburgo, por recomendação médica, por motivos de saúde. Assim,
mesmo, foi para uma localidade bem próxima, quase vizinha, na zona serrana do
atual Estado do Rio de Janeiro. Dizem que o escritor bem que gostaria de viajar
para a Europa, principalmente para a Itália, que ainda não era (recorde-se) o
país que é hoje, unificado e estável. Não passava de um conjunto de diversas
regiões autônomas, cada uma constituindo um Estado independente.
Dizem, também, que Machado de Assis gostaria, ainda, de
conhecer Portugal, terra de origem de sua amada e eterna musa Carolina Augusta
Xavier de Novaes, principalmente o Porto, localidade em que ela nasceu. A
pergunta que se impõe é: Por que, então, o escritor não viajou para esses
lugares (e tantos outros)? Bem, o motivo principal, pelo menos o apontado, é a
fragilidade da sua saúde. Provavelmente (ou possivelmente, sei lá) temia não
resistir à travessia de navio (na época não havia outro meio de se ir à
Europa). Tenho a intuição, porém, que essa não era a única razão e nem mesmo a
principal. Suponho que suas múltiplas atividades – como escritor e como
servidor público – não lhe permitiam esse luxo. E que o Rio de Janeiro lhe
bastava para tudo o que fazia e o que planejava fazer.
Suas “viagens” foram outras, mais fascinantes, do tipo que
todos nós – e, sobretudo, os poetas – volta e meia fazemos, sem deslocamentos,
despesas, riscos e contratempos: as da imaginação. Por meio dela vamos onde
homem nenhum jamais chegou e provevelmente nunca chegará. Às estrelas mais
remotas do Universo. E a imaginação do “Bruxo do Cosme Velho”, convenhamos, era
das mais férteis (diria “fertilíssimas”, recorrendo à minha maníaca obsessão
por superlativos) que se possa encontrar. A esse propósito, aliás, “topei”, dia
desses, com um livro que tem tudo a ver com esse tema, e desde o seu título.
Refiro-me a “O viajante imóvel – Machado de Assis e o Rio de Janeiro do seu
tempo”, do jornalista e escritor Luciano Trigo. Uma delícia! Trata-se de obra
que surgiu quase que por acaso.
O autor explica por que: “(...) Nasceu de um convite da
Editora Record para fazer um texto que ilustrasse um livro de fotografias do
Rio antigo, com frases pinçadas da obra de Machado: contos, romances e
crônicas”. E Luciano acrescenta: “No processo da pesquisa, verifiquei que o
volume do material renderia um ensaio mais alentado, mais profundo, e seria
transformado o projeto num livro de texto, no qual as ilustrações entrassem
meramente como ilustrações. E foi o que aconteceu. Daí surgiu ‘O viajante
imóvel - Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo’, que virou mais
tarde uma exposição aqui no Espaço Machado de Assis, com texto meu também”.
Como se vê, não foi planejado. Não, pelo menos, para o que se transformou. Ou
seja, nasceu por “acaso”. Bendito acaso!
A expressão “o viajante imóvel” cabe como uma luva no caso
de Machado de Assis. É, como diriam os jovens do meu tempo (não sei se essa
gíria ainda é usada ou se já se tornou arcaica) “uma grande sacada”. Outro
ponto do livro de Luciano Trigo que me chama, em particular, a atenção, é o que
ele escreveu nas primeiras linhas da introdução dessa obra: “Não há novidade em
afirmar que Machado de Assis foi muito mais um retratista do que um
paisagista”. Só contesto sua afirmação de que isso não é novo. Confesso que não
li essa caracterização em nenhum outro livro, de nenhum outro autor, dos tantos
que tratam do nosso mais genial escritor. Para mim, essa afirmação é novidade
sim!
E qual a diferença entre um “paisagista” e um “retratista”?
Poderia citar muitas, mas citarei a que considero a principal. O primeiro
preocupa-se com o conjunto de uma imagem (seja ela paisagem ou pessoa, não
importa) sem dar maior importância a detalhes. Já o segundo é sumamente
detalhista. Concentra-se em minúcias, em particularidades, em detalhes, no que,
geralmente, escapa ao olhar distraído dos menos atentos (ou dos desatentos).
Para Trigo, a obra do nosso personagem é, quase sempre, analisada pelo enfoque
do “paisagista”.
No que ele conclui: “Por conta disso, quase sempre que se
escreve sobre ele, a ênfase cai nos aspectos psicológicos de sua obra, na sua
capacidade de criar personagens verossímeis, na sua curiosidade quase mórbida
pelos recantos mais ocultos da alma humana. Mas esse predomínio da psicologia
sobre a geografia não anula a presença desta última em sua obra. Na verdade, é
impossível isolar os contos e romances de Machado do contexto em que eles se
inscrevem (e no qual ele os escreve) - o Rio de Janeiro do Segundo Reinado - e
das transformações por que passou a sociedade em que o autor viveu, e das quais
foi espectador privilegiado”. Minha conclusão é a mesma da que Trigo deixa
apenas implícita. A de que, o “Bruxo do Cosme Velho” faz mais uma de suas
“bruxarias” e consegue a façanha de ser, simultaneamente, “retratista” e “paisagista”,
posto que com certo predomínio do primeiro. Ou estou errado?
Boa leitura.
O Editor.
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