Natureza viva
* Por Marco Vasques
Conduz a carroça cheia de papel. Não. Não é um cavalo. É um homem.
Descalço. Unhas negras. Um imenso bigode que esconde a ausência dos dentes. Uma
garrafa de pinga numa sacola. Feridas se espalham pelo corpo. O cabelo é mais
duro que o das velhinhas que frequentam o Lindacap nos finais de semana. E olha
que nem o vento sul é capaz de mover os cabelos das senhorinhas que se enfeitam
mais que árvore de natal para almoçar nos sábados gloriosos, desfilando com
suas joias e roupas de grifes. Ele não, ele tem o cabelo negro fixados pelas
noites sujas de sono e pela intempérie da vida e da rua. Carrega um olhar
atravessado pela melancolia, porém fixo e firme. O castanho, com a luz do sol,
ganha tinturas de mel. Os pés, soberbos, desbravam caminhos; não há chão
indelicado que não suporte. Enfim, um homem altivo na paisagem fria do homem.
A imagem, infelizmente, se tornou tão corriqueira que um homem, um
cavalo, uma barata, um rato ou um cachorro que puxe uma carroça de papelão
atrás de um pedaço de vida dentro da vida em nada ou em quase nada se
diferenciam. A dureza das cidades nada mais é do que a dureza do homem. Os
dejetos se acumulam. O que é sobra passa a ser o mundo de outros mundos. Meio
atrapalhado, ele disputa ora a calçada, ora a rua. Sem mistura, notável, entre
automóveis e gentes. Tão gente, tão físico e tão incolor, tão invisível na
tarde fria. Ele segue na busca do pão necessário.
Sobre a carroça, em meio às sobras das gentes privilegiadas, uma menina
espia o mundo do alto de seu império. Rainha das rainhas, ela carrega um
sorriso mais terno que alegria de mãe. Ao lado dela, um gato e um cachorro, em
harmonia, dividem o carinho e o sorriso solar daquele anjo borrado dentro da
poluição humana. A carroça balança ao subir na calçada e o corpo dela faz um
movimento leve. Parecia estar em cima de um elefante calmo e domar com
soberania os movimentos do pai. Ele, todo cuidadoso, a cada solavanco, olhava
de esguelha e abria um sorriso enrugado para sua dama de honra. Ela olha, abre
outro sorriso. E de sorrisos se completaram.
O mundo agora era outro. Nenhum poema expressará a cumplicidade entre
aquela menina e seu pai. Nenhuma poesia será capaz de captar a ternura entre os
dois corpos. Não há como entrar naquelas peles inefáveis que entraram na mais
significativa das lutas, a luta afetiva. Algo de sublime aterrava todo a dureza
do entorno. Um uivo de carinho, debruçado no silêncio, se fez presente nas
faces acinzentadas daquelas vidas. Não, não era um cavalo escorraçado a
chibatadas. Era um homem e sua pequena, crucificando a imperfeição e a
impureza.
*
Poeta e bacharel em Filosofia
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