Cadê os Amarildos da Bahia?
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Crendeuspai! Sinto um cheiro arretado de chifre queimado no ar. As redes
sociais anunciam que o governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), vai enfrentar
nas próximas semanas inferno tão terrível quanto o de seu colega do Rio, Sérgio
Cabral. O rabo do capiroto já balança dentro do Palácio de Ondina, residência
oficial, impregnada do fedor de enxofre.
Tudo isso porque jagunços armados que mataram um índio permanecem
impunes, o que estimula a criação de novos amarildos, desta vez baianos.
Relatos de Yakui Tupinambá e de Edson Kayapó, sequestrado e espancado, narram a
violência contra os índios, sem que a grande mídia desse um pio. Por isso, o
movimento indígena está recorrendo às redes sociais para romper o silêncio.
Barulho
do gatilho
Edson Kayapó, 41 anos, coordena o curso de Licenciatura Intercultural
Indígena do Instituto Federal da Bahia (IFBA) no campus Porto Seguro e lá é
professor de História. Tem muitos amigos espalhados pelo Brasil: do Oiapoque ao
Chuí, passando por Minas onde se graduou na UFMG e por São Paulo, onde concluiu
o mestrado e o doutorado em História Social na PUC, orientado pela doutora
Circe Bittencourt.
Respeitado e querido na academia, o doutor Edson Machado de Brito - o
Edson Kayapó - deu aulas na PUC/SP e na Universidade Federal do Amapá como
professor colaborador. Na qualidade de doutor, especialista em educação
indígena, foi chamado ao Rio de Janeiro para participar de evento organizado
pela Pós-Graduação em História e da banca de monografia do guarani Algemiro
Karai Mirim na Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ, realizada na última
segunda-feira, quando estivemos juntos.
Foi aí que o convidei para irmos no dia seguinte à Bienal do Livro, lá
encontraríamos dois escritores indígenas Daniel Munduruku e Graça Graúna, com
quem eu compartilhava uma mesa no Café Literário. Edson agradeceu o convite,
mas informou que tinha obrigações na Bahia e precisava retornar na terça-feira.
Voltou e dois dias depois sofreu um atentado, quando seguia para Pau Brasil num
carro oficial do IFBA, na companhia de dois professores: João Veridiano e Júlia
Rosa.
Por volta das 11h da última quinta-feira, quatro jagunços armados
interceptaram o carro do IFBA em São José da Vitória, nas proximidades de
Buerarema. "Tem um índio no carro" - disse um deles.
Expulsaram os professores e o motorista, confiscaram os celulares de cada um,
deixaram todos eles na estrada e incendiaram o carro. Duas viaturas da Guarda
Nacional passaram pelo grupo, mas se recusaram a dar proteção a Edson, que é
funcionário federal. Seus colegas, então, recomendaram que ele voltasse de táxi
a Itabuna para se afastar da área de tiro.
- Foi o que fiz, no entanto o taxi foi interceptado em Buerarama por
pessoas armadas, que me espancaram, me ameaçaram de morte com uma arma apontada
pra minha cabeça. Fui submetido a um interrogatório pelo chefe dos pistoleiros:
- Você é índio, né?
- Sou Kayapó, não sou daqui da Bahia.
- Mas você é indío, né?
- Sou, sou Kayapó, sou da Amazônia.
- O que você tá fazendo aqui?
- Sou professor do IFBA, trabalho na Licenciatura Intercultural
Indígena.
- Você é amigo deles. Você está preparado pra morrer?
- (silencio).
- (barulho do gatilho da arma…Não disparou)
- Vá embora, nem olhe para trás.
Arco digital
Por telefone, de um lugar escondido no interior da Bahia, Edson me conta
o que aconteceu depois:
- Eles me soltaram, consegui chegar em outra cidade, onde me escondi.
Não sei quando poderei sair daqui, a BR está fechada pelos capangas dos
fazendeiros. Estou com o olho esquerdo inchado. Hoje, eu achei que morreria.
A região da Serra do Padeiro, entre Buererama, Una e Ilhéus, é um
caldeirão que já começou a explodir, devido à disputa por terra indígena
ocupada por fazendeiros. Um índio de 35 anos, casado, da comunidade Tupinambá
de Olivença, foi morto na noite de terça-feira, o que foi confirmado pela Polícia
Federal e pela Funai. Seu corpo permanecia no Departamento de Polícia Técnica
(DPT), aguardando o reconhecimento da família para ser liberado.
O couro comeu na semana passada, quando a Justiça Federal suspendeu as
nove liminares que favoreceriam os grandes fazendeiros da região. A medida,
segundo a Advocacia Geral da União, autoriza a permanência na área de cerca de
500 famílias tupinambá, o que deixou os fazendeiros enfurecidos, passando a
atuar à margem da lei.
O depoimento de Yakuy Tupinambá, 51 anos, confirma o clima de terror
instaurado pelos jagunços no sul da Bahia:
- "Eles nos atacaram, tocaram fogo em nossas casas, expropriaram
nossa produção, queimaram carros do governo que prestavam assistência a nós. O
clima é de apreensão e medo, o governo não dá atenção ao caso, os direitos
humanos são violados, ainda há pouco fecharam a estrada vicinal em Sapocaeira,
queimaram oito casas dos parentes, saquearam e depredaram uma loja só porque o
dono vendia material de construção para os índios. Um ônibus escolar com
crianças indígenas foi atingido por disparos".
Yakui critica o governo da Bahia e a imprensa local, que "está
incitando a violência contra nós". Reclama da "mídia comprada",
que cobre um engavetamento de carros no interior da Inglaterra, mas não conta o
massacre daqui. "A mídia não nos ouve, nos desqualifica e nos
descaracteriza. Quando registra a recuperação da terra indígena por nós, não
fala em 'retomada', mas em 'invasão'. A mídia é tendenciosa". Recentemente
o Globo confessou que errou na cobertura do golpe militar de 1964. Falta
reconhecer o erro, que persiste, na cobertura dos conflitos com índios.
Fitifiu e vaia
Com essa avaliação, Yakui recorreu às redes sociais, que conhece bem por
atuar no blog Índiosonline e por ter reflexão apresentada em vários
eventos sobre o tema, entre os quais o I Simpósio Indígena sobre Uso da
Internet nas Comunidades Indígenas e o Seminário Literatura Internet e
Liberdade, na UFRJ, em 2010. Ela diz:
- Não existe instrumento de comunicação mais democrático que a internet,
jamais conseguimos espaço na grande mídia para contar a nossa história,
denunciar a violação de nossos direitos. Hoje, basta um clic e estou passando
informações para todo o Brasil, para organismos internacionais como a Anistia
Internacional e até para a ONU.
Yakui deu um depoimento interessante sobre o assunto no livro Arco
Digital: uma rede para aprender a pescar: "A internet promoveu a
abertura de horizontes, contrariando o pensamento de quem está interessado em
nos manter amordaçados, trouxe-nos novos significados, sem que isso implique
abandono de nossas tradições. Conectar-se ao mundo através da internet é ter
direito a um rosto e fazer ouvir nossa voz".
O blog Indiosonline exibe, entre outros, quatro vídeos referentes
à retomada de território pelos Tupinambá, que acumularam mais de 500 anos de
resistência, incluindo o longo período em que, para sobreviver, permaneceram
camuflados. São produções realizadas pelos próprios índios, em imagens
registradas por Potyra Tê Tupinambá, Fábio Tupinambá e Bruno Ninhã Tupinambá e
editadas por Alex Pankararu.
O movimento indígena está usando essas novas tecnologias para denunciar
o governador Jaques Wagner. Sua eleição foi celebrada por todos nós por
derrotar a oligarquia da Bahia, mas agora ele acabou aceitando a pressão dos
fazendeiros. Solicitou que o reconhecimento das terras indígenas fosse adiado.
Por isso, os Tupinambá podem significar para ele o que a aldeia Maracanã foi
para Sérgio Cabral. As vaias e o fitifiu generalizado já começam a se
transformar em rotina nos eventos públicos da Bahia.
Uma pena! Gostaríamos de aplaudir Jaques Wagner por uma decisiva defesa
dos direitos indígenas. Se isso não acontecer, podem me incluir entre aqueles
que vão pedir a ficha de inscrição no black bloc para acampar
virtualmente em frente ao Palácio de Ondina e infernizar a vida do governador
para que ele retome os princípios que o elegeram. Não queremos mais amarildos.
P.S. 1
No Rio, na segunda-feira, dia 2 de setembro, Edson Kayapó participou da
banca de Algemiro Karai Mirim na Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ,
coordenada por Roberta Lobo da Silva, ao lado de Ana Paula da Silva -
orientadora e José Bessa - coorientador (UNIRIO/UERJ), Marília Campos e André
Videira (UFRRJ) e Ruth Monserrat (UFRJ), que enviou por escrito seus
comentários. Depois compartilhou a mesa no evento "Territórios e
Territorialidades Indígenas" com Juciene Apolinário (UFPb), Izabel
Missagia e Vânia Moreira (PPGCS-UFRRJ), além do autor deste texto. Os
depoimentos de Yakui Tupinambá foram recolhidos por Renata Daflon em sua
dissertação "Patrimônio em rede, memória criativa e performance: um estudo
do blog Índios Online"(PPGMS-UNIRIO).
P.S. 2
ALARCON, Daniela Fernandes. O retorno da terra: as retomadas na aldeia
Tupinambá da Serra do Padeiro, sul da Bahia. 2013. xx, 272 f., il. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais)—Universidade de Brasília, Brasília,
2013.Orientador: Baines, Stephen Grant.
Resumo: Esta
dissertação de mestrado discute as “retomadas de terras” levadas a cabo pelos
Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, sul da Bahia, Brasil. Em definição
sucinta, pode-se dizer que as retomadas consistem em processos de recuperação,
pelos indígenas, de áreas por eles tradicionalmente ocupadas, no interior das
fronteiras da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, já delimitada, e que se
encontravam em posse de não-índios. Entre 2004 e 2012, os Tupinambá da Serra do
Padeiro retomaram 22 fazendas e, a despeito das tentativas de reintegração de
posse – com a realização de prisões de lideranças e prática de tortura contra
os indígenas –, mantêm a ocupação de todas as áreas. Concebendo o território, a
um só tempo, como pertencente aos “encantados” (classe de seres não humanos com
os quais convivem os indígenas), construído pelos antepassados, e como condição
de possibilidade de vida autônoma, os Tupinambá compreendem sua atuação como
inscrita em uma história de longa duração. Nesse sentido, as retomadas são mais
que “instrumentos de pressão”, destinados a fazer com que o Estado brasileiro
concluísse o processo administrativo de demarcação da Terra Indígena. Essas
formas de ação são parte de uma estratégia de resistência e luta pelo efetivo
“retorno da terra”, categoria engendrada pelos Tupinambá, lastreada em suas
concepções territoriais, e que será debatida neste estudo. Apesar de as
retomadas serem reconhecidas pela literatura antropológica como uma prática
disseminada entre os povos indígenas no Brasil, elas não têm sido objeto de
estudos detidos. Tendo isso em vista, por meio de incursão etnográfica e
pesquisa documental, buscou-se descrever e analisar o processo de retomada do
território Tupinambá, com vistas a somar esforços na construção de um quadro
analítico das formas contemporâneas de resistência indígena.
*
Jornalista e historiador
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