Gestos inaugurais
* Por Daniel Santos
A
bem dizer, ainda não há ritmo. Apenas uma pressão entre luz e treva fermenta
expectativas. Rompe-se, afinal, o pesponto que unia as duas partes e a vazante
da claridade vence onde, antes, vigoravam meios tons.
No
entanto, ainda não é a manhã. Não, plenamente. O sol, sem a insolência que
assumirá mais tarde, quando a pino, atravessa a vidraça da cozinha e, quase
humilde, toca a fruteira de cristal no centro da mesa.
Ali,
aquenta as mangas que sentem amolecer sua crosta rugosa, desprendem eflúvios e engordam amorosas,
agradecidas. Há por toda parte uma promessa de incêndio, mas, por ora, só um
rubor tinge o instante.
Mas
o velho calça a chinela e levanta pra cuspir, sem consciência dos seus gestos
inaugurais. Um clarão progressivo adere às superfícies a etiqueta de um novo
dia. Nada nem ninguém pode deter tanto assombro.
E
agora, sim. Agora é a manhã. O pigarro, a bica da pia, o canto do galo, o
tilintar das canequinhas de flandres ... ouve-se em tudo o conjugar de um
gerúndio só regozijos. As portas se abrem, a vida chama para a rua.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de
São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Despertar assim, com tanta poesia, nem é despertar, é uma ebulição e um cheiro de vida que encanta.
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