Um gol inesquecível
contra Pinochet
* Por Urariano Mota
Entre as imagens que nos vêm a partir do 11 de setembro de 1973, do dia
em que houve o golpe militar contra Salvador Allende, uma se destacou para mim
neste setembro de 2013. Entre tantas imagens vivas, uma poderia ser, com razão,
do presidente Allende resistindo de capacete em ultimo recurso, com alguns
fiéis militantes às portas do palácio La Moneda. Essa imagem fala de um
socialista democrata, que pela força das urnas julgava ter o poder, que é
destruído ao fim, derrotado com a eloquência maior de bombas e crimes.
Outra imagem poderia ser também a que correu mundo, dos livros sendo
queimados por soldados do exército nas ruas do Chile. Em um país de grandes
poetas e tradição humanista, essa foto escapou do paradoxo, porque ela se fez
coerente com o assassinato do poeta Pablo Neruda pela ditadura. E depois, essa
imagem dos livros no fogo é tão simples e pornográfica, ao mesmo tempo de
tamanho didatismo sobre a ideologia fascista no seu carbono Pinochet, que um
comentário passaria pelo já visto, ao lembrar e repetir ações de Hitler a
Franco, todos ótimos queimadores de escritores, livros e inteligência.
Então falo rápido sobre o que me marcou. Não são muito divulgados no
Brasil um gesto, a pessoa e o valor de Carlos Caszely. Ele foi um craque do
futebol chileno. A wikipédia informa que Carlos Caszely é o jogador mais
popular e querido da história do Colo-Colo e do Chile. Até hoje é chamado de El
Chino, El Rey del Metro Cuadrado, ou de El Gerente. Mas o seu
maior feito é este: astro da seleção de futebol do Chile, em cerimônia oficial
dentro do palácio, no vigor de mortes e fuzilamentos de opositores, Carlos
Caszely se negou a apertar a mão do ditador Augusto Pinochet.
Ou como ele próprio fala desse momento raro e belo, anos depois: “Eu
ouvi passos. Foi pavoroso. De repente as portas se abriram. Apareceu uma figura
vestindo uma capa, de óculos escuros e quepe. Tinha uma cara amarga, suja,
dura. Ele foi cumprimentar cada um dos jogadores qualificados para a Copa.
Quando ele se aproximou, eu botei minhas mãos atrás das costas. Ele estendeu
sua mão, mas recusei a apertar. Como ser humano aquela era minha obrigação.
Tinha todo um povo sofrendo nas minhas costas”. Mas que coisa.
As razões do gesto, desse heroísmo, são anteriores. Não foi um impulso
louco. Antes, o jogador havia sido ligado ao ex-presidente Salvador Allende,
socialista como o presidente morto. Depois do golpe, Caszely se transferiu para
o futebol espanhol. E o que faz a canalha do regime no Chile? Perto da Copa de
1974, os militares sequestram, prendem e torturam a mãe do jogador. Supõe-se que
isso era uma tentativa de calar Caszely e obrigá-lo a jogar pela seleção
chilena. Entre os perseguidos da ditadura, ele era o principal jogador do
futebol chileno, estrela do Colo-Colo e da seleção. Ele achou o ato de tortura
na mãe tão estúpido, que declarou recentemente:
“Ainda hoje não está claro por que fizeram aquilo. Eles a prenderam e
torturaram selvagemente, e até hoje não sabemos de que ela era acusada. Recordo
un país triste, calado, silencioso, sem risos. Uma nação que entrava nas
trevas. Eu sabia o que viria de cima. Eu tinha medo. Não por mim, mas por meus
amigos e por mina familia. Eu sabia que estavam em perigo por minhas ideias”.
Então sua mãe é presa, torturada e solta, sem qualquer acusação. E pouco depois
o jogador se encontra cara a cara com o ditador, na despedida para a Copa de
1974 na Alemanha. Então ele põe as mãos para as costas, enquanto Pinochet se
aproximava a cumprimentar um a um. Ele foi o único a rejeitar o ditador.
Enquanto escrevo, ao lembrar esse ato, sinto um cheiro de perfume,
daqueles inesquecíveis, cujo cheiro e composição química vêm apenas da
lembrança que cerca um gesto. Naquele maldito e mágico ano de 1973, quando o
mundo conhecido vinha abaixo, no momento exato em que grandes eram as
esperanças, houve esse gesto de Caszely tão pouco ou nada divulgado. Soube
hoje. Que coragem, podíamos dizer. E aqui, se espaço houvesse, deveríamos
discutir o quanto estão errados os que julgam ser a coragem um atributo de
valentões, de homens que zombam do perigo. Não é. A coragem é a fidelidade ao
sentimento de honra, dever ou amor. Por isso dizemos: que afeto e grandeza em
ser fiel ao mais íntimo sentimos naqueles braços para trás de Caszely, enquanto
avançava contra ele o ditador. Com certeza, o jogador tremia, mas não podia
ainda assim ceder à mão de Pinochet no cumprimento.
Não sei, mas esse me parece o maior gol de placa da história.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Tem um pessoal que é assim, convicto dos seus princípios, e em cima deles encontra coragem para desafiar o poder, o poderoso e o medo. Gesto de indiscutível coragem. Não o conhecia.
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